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Lenina Pomeranz

lenina_pomeranzHistória de Vida

Identificação
 

Chamo-me Lenina Pomeranz. Nasci em São Paulo, em 1933, no dia 26 de fevereiro. Meus pais eram Herman Pomeranz e Tela Green Pomeranz. Eles são da Polônia. Minha mãe nasceu na Inglaterra, mas foi criada na Polônia. E meu pai é polonês, de uma região que antigamente pertenceu ao Império Austro-húngaro.

 

 

Infância

 

 

Criei-me, na infância, na Vila Buarque. Eu morava na Rua Santa Isabel, ali perto da Santa Casa. Depois fui parar no Bom Retiro, do Bom Retiro fui para os Campos Elíseos e finalmente estou nos Jardins, Cerqueira César. Foi uma infância feliz, de certa forma. Meu tio, que veio da Europa quando meus pais já estavam aqui, tinha um armazém na esquina da Rego Freitas com a Santa Isabel. E nós morávamos na Rua Santa Isabel, numa casa tipo, como hoje nós chamaríamos de cortiço, não era bem um, mas uma casa coletiva. Nós morávamos num quarto e tínhamos um banheiro fora do quarto. Mas eu tinha bons amigos. Eu era amiga das filhas do carvoeiro, das filhas do barbeiro. Então, nós constituíamos um grupinho de crianças felizes, eu acho. Eu freqüentava, naquela altura, o Colégio Oswaldo Cruz que ficava ali na Santa Isabel. Era colégio ou ginásio, não me lembro o nome. Eu era uma boa aluna, com disputa de primeiro lugar, sempre. Na Rua Santa Isabel, morava uma peleteria [fabricante de abrigos de pele], judia também como minha família, e que tinha uma filha. Nós disputávamos o primeiro lugar da classe. Numa dessas, eu adoeci e a menina ficou com o primeiro lugar. Depois nós saímos de lá e eu fui para o Bom Retiro, morar na casa da minha avó. Era uma casa coletiva, muito grande, nela moravam a minha avó, os dois irmãos da minha mãe e mais a irmã dela. A irmã dela casada, o mais velho casado e o outro, que por acaso era anão, solteiro. Eu já estava na pré-adolescência, já tinha mais de dez anos. Ali as brincadeiras eram imitar os filmes de Hollywood, dançar, cantar, essas coisas todas.

Meu pai, para ter me dado esse nome, tinha uma perspectiva de mundo que eu posso chamar quase que de anarquista. Ele era um cidadão desses bem radicais, na sua visão de mundo. E me ensinou que o mundo é desigual, que as pessoas têm que lutar pela igualdade, por uma sociedade mais justa.

Eu participei da diretoria da UNES, União dos Estudantes Secundários. Fiz parte do movimento estudantil, fui da diretoria da UBES, que eu acho que era União dos Estudantes Secundários. E eu fiz parte da primeira diretoria, ajudei a fundar no Congresso e militei no movimento secundarista até ir para Universidade. Na Universidade, minha atividade foi mais no Centro Acadêmico. Ajudei a fazer a reforma do ensino na faculdade como representante do corpo discente. Então, acho que minha preocupação com o social sempre se manteve, de uma forma ou de outra. Depois fui parar no DIEESE e aí me vinculei ao movimento sindical e trabalhei no DIEESE. Para mim, era mais que uma profissão. Era uma profissão e uma perspectiva de trabalhar com os trabalhadores, uma perspectiva de ajudar a organizar o movimento sindical, servir ao movimento sindical de alguma forma.

 

 

Trajetória Profissional

 

 

Comecei a trabalhar, para ganhar dinheiro, aos 13 anos. Antes de ganhar dinheiro , comecei a trabalhar na minha casa. Minha mãe saía para trabalhar e eu cuidava da casa e do meu irmão menor, até os 13 anos, mais ou menos. Houve um período muito sofrido, depois que meu tio vendeu o armazém, houve um período muito difícil, do ponto de vista econômico, muito sofrido. E meu pai e minha mãe começaram a trabalhar. Minha mãe começou primeiro numa oficina de costura de um cunhado e de uma irmã mais velha. Meu pai, não me lembro o que ele fazia nessa época. Eu cuidava da casa e do meu irmão mais novo. Quando estava próxima dos 14 anos, eu já freqüentava a Escola de Comércio Álvares Penteado e fazia um pouco de inglês, um pouco de balé. Mas, meu tio, esse baixinho, ficava numa das lojas de um outro cunhado e me arranjou um emprego com um vizinho da loja, numa fábrica de guarda-chuvas na Rua Santa Efigênia. De manhã eu ia para escola, saía da escola, comia rapidamente. Às vezes eu ia para escola de balé, antes de ir para o trabalho. E lá eu tinha um trabalho como auxiliar de contabilidade, fazia a escrita fiscal, que hoje não se faz mais, eu acho. Nem sei se ainda se faz. Eu fazia a escrita fiscal e o contador também trabalhava, não sei se trabalhava o dia inteiro, ou meio dia. Ele me dizia: “quando passar o dono, você, mesmo que não tenha serviço, finge que está trabalhando”. Eu na minha inocência, não sabia fazer isso. Não sabia nem... Fui educada a não mentir, não inventar as coisas. E várias vezes, ele passou e me pegou lendo romance. Aí, eu fui sumariamente despedida. Esse foi meu primeiro emprego.

Depois eu fui parar, mais tarde, numa fábrica de buzinas. Também uma microempresa, uma empresa pequena, que era no final da Luis Góes, ali na Vila Mariana. E o esquema de trabalho era bem familiar. Lá eu acho que já estava formada em técnica de contabilidade, não me lembro do intervalo. Lá eu trabalhei, fazendo de tudo, fazia parte escritural, fazia fatura, cuidava do escritório. E não havia uma relação formal de emprego, embora eu fosse registrada e tudo. Era uma relação quase familiar, eu subia para tomar café com a dona. Enfim, era um outro tipo de relacionamento. Lá eu fiquei certo tempo, não sei dizer quanto exatamente.

 

Formação Acadêmica
 

Entrei para faculdade e, eu estudava de manhã e trabalhava à tarde. Numa dessas, o Albertino (Rodrigues) era meu professor na segunda série, em História Econômica, disciplina conduzida pela Professora Alice Canabrava. Era uma mulher, esta sim era pioneira, sensacional, uma pesquisadora reconhecida mundialmente. Sobretudo era uma mulher fantástica, fantástica. Temperamental, mas fantástica. E com ela trabalhavam o Fernando Henrique Cardoso, o José Albertino e depois entrou esse professor de história, que é muito laureado agora, o (Fernando) Novaes. Antes de o Albertino me convidar, eu trabalhei como estagiária do Professor Mário Vagner Vieira da Cunha, lá na escola. Quando ele me convidou, eu passei a trabalhar no DIEESE, acho que isso foi em 53, mais ou menos.

A Economia é uma ciência social e foi isso que me levou a estudar Economia, além de ser uma continuação da Contabilidade. Numa idéia de que fazendo o curso de Contabilidade, você tinha que seguir adiante. Tanto que o primeiro ano da faculdade, eu fiz na Álvares Penteado ainda. Eu fiz o vestibular no ano seguinte para USP, Faculdade de Economia. É interessante talvez registrar que naquele tempo, nós éramos poucos alunos de Economia. A minha turma devia ter sete ou oito alunos. À noite, eram 13, 14 alunos. Era uma escola nova, não tinha a estrutura que tem hoje a Faculdade de Economia. Era uma Faculdade de Economia e Administração tudo junto. Administração e Contabilidade. O único curso separado era o de Ciências Atuariais, se eu não estou enganada. Então a gente se formava com uma visão do conjunto. Mas a Economia sempre teve para mim um sentido de economia política e, portanto, uma ciência social. A minha perspectiva sempre foi a de economia política. E no começo, a faculdade inteira tinha quatro mulheres. Foi até interessante, porque elas promoveram um café para me receber. Mais uma mulher, mais uma aluna. Depois eu parei de estudar durante uns três anos e meio, precisei trabalhar. Quando eu voltei, nós éramos duas na sala de manhã. À noite, preciso olhar no meu álbum de formatura, mas acho que são poucas as mulheres. Na verdade, nós nos formamos cinco ou seis, no máximo. Eu me formei em 59.

Um pouco mais tarde, eu já estava lecionando, apareceu na faculdade um anúncio de que na Polônia, em Varsóvia, a Escola Superior de Estatística e Planejamento, mais a Comissão Econômica da Europa das Nações Unidas estavam oferecendo um curso de planejamento para economistas do Terceiro Mundo. Bom, como eu estava na faculdade e tinha a perspectiva de fazer um doutoramento, para fazer carreira, e eu estava interessada em planejamento, eu acabei querendo ir para esse curso. Inscrevi-me para ir para esse curso. Nós fomos em quatro brasileiros para esse curso. Eu, de São Paulo, o Jorge Miglioli, do Rio de Janeiro, o Arthur Candal, de Porto Alegre e o Ivanzinho Ribeiro, do Rio de Janeiro. A gente não se conhecia, se conheceu lá em Varsóvia. Fui então para esse curso, que era um curso de quatro meses, com dois meses para escrever um texto. Enquanto estava em Varsóvia fazendo o curso, apareceu por lá um pesquisador soviético e o Diretor do curso, sabendo do meu interesse em fazer pelo menos uma visita à União Soviética, para levantar material sobre planejamento, ele me apresentou a esse professor dizendo que eu tinha interesse em ir para lá. E ele conseguiu uma bolsa para mim. Quer dizer, eu não fui para União Soviética, não fui para Europa com a intenção de ficar na União Soviética. Eu queria passar lá e recolher material para fazer uma tese sobre planejamento, cujo berço é a União Soviética. Eu estou usando o presente, porque o berço continua. Ela acabou, mas ela foi berço e, portanto ela é o berço do planejamento. Fui parar em Moscou. Houve um engano, ou sei lá o que aconteceu com esse professor, que como eu falei que tinha interesse em planejamento, ele me mandou para um Instituto que cria planejadores, que forma planejadores. Em vez de me mandar para um Instituto de pesquisa. Provavelmente porque não havia naquele tempo, um Instituto de pesquisas sobre planejamento. A Academia de Ciências tinha um Instituto de Economia, um Instituto de Economia Mundial e Relações Internacionais, Instituto de Economia dos Países Socialistas, Instituto da Ásia, Instituto da África, Instituto dos Estados Unidos e Canadá, enfim. Mas não tinha um instituto de pesquisas sobre planejamento. Deve ser esta a razão, porque ele me enviou para um Instituto que formava os técnicos para o planejamento da União Soviética. Era uma Faculdade, só que ficava num Instituto onde havia outras Faculdades e não só essa. E eu fui parar numa Faculdade de Economia, de Planejamento da Economia Nacional. Fui apresentada ao Chefe de Departamento, que passou a ser meu orientador. E percebi rapidamente que não ia levantar material nenhum, porque naquela altura não havia material nenhum sobre planejamento da União Soviética, em nenhuma das seis línguas que eu conheço. E eu não conhecia o russo. Eu só ia poder levantar alguma coisa se soubesse russo. Eu fui visitar a Biblioteca Lênin, que é um monstro de biblioteca, fui visitar a Biblioteca do Instituto de Ciências Sociais do Instituto da América Latina, mas não havia nada sobre o planejamento soviético que não fosse em russo. A não ser coisas muito isoladas, que não dá para fazer uma tese, uma dissertação. Ai esse meu orientador acabou me indicando uma professora de língua russa. Então os primeiros dois meses, eu cheguei em meados de fevereiro, 17 graus abaixo de zero, uma socióloga de quem eu fiquei depois muito amiga, do Rio de Janeiro, Fanny Tabak, estava lá na estação ferroviária com uma bandeirinha brasileira, porque a gente não se conhecia. E me levou para casa do estudante e lá eu fiquei. Deram-me então esses dois primeiros meses. Eu fiquei, digamos assim, de dez horas de meu estudo e trabalho, eu gastava um tempo na biblioteca tentando achar alguma coisa, mas basicamente, especialmente enquanto fazia muito frio, eu ficava estudando russo. Com essa professora, eu tinha aulas diárias de duas horas e depois tinha os exercícios para o dia seguinte da aula. Por isso em três meses eu aprendi o russo. Nesse intervalo enquanto, eu cheguei em meados de fevereiro, eu escrevi para o professor Mario Vagner pedindo uma prorrogação da bolsa. Em resposta, recebi uma bronca: “A tua bolsa não era para União Soviética, era para Polônia, Você está cometendo uma ilegalidade administrativa. Não tem nada que ficar aí. Volte imediatamente”. Aí eu estava na dúvida, mas tinha que voltar. Só que aí alguém tomou a decisão por mim, que foram os generais em 31 de março de 64. E eu tive que ficar, acabei ficando, perdi o emprego na faculdade e acabei ficando para fazer o doutoramento. No primeiro ano, eu ainda não fiz nada relacionado com o doutoramento, que eu queria voltar para algum lugar próximo do Brasil, por causa da família. E por conta de ter maiores facilidades de comunicação. Escrever da União Soviética nesse período para qualquer pessoa no Brasil, eu achava que colocaria em risco as pessoas, inclusive a família, amigos. E queria ficar mais próxima. Eu tentei França, tentei Chile. Mas quem é que ia dar emprego para uma recém-formada, sem nenhum currículo maior de nada, sem doutoramento, sem nada. Eu acabei não conseguindo. Mas me valeram algumas muito boas amizades, de pessoas que tentaram me ajudar. Uma figura que eu faço questão de registrar é o professor Jean Bénard na França, já morto também, que tentou me ajudar por razões de ordem humanísticas mesmos. Porque, ele mesmo em 56, com a invasão da Hungria pela União Soviética, tinha mandado a União Soviética plantar batatas. Mas era uma figura muito humana e procurou me ajudar. A certa altura, ele me escreveu que seria interessante eu ir para Paris, porque longe era mais difícil conseguir trabalho. Agora, eu só tinha rublo. Não tentava economizar dinheiro, porque o rublo não era conversível. Como iria para Paris? Manter-me como, de que jeito? Então fiquei lá, acabei não conseguindo trabalho. Escrevi para o Fernando Henrique pedindo para ir para o Chile. Ele me disse: “Você tem bolsa. Fica aí que nós já temos muito exilado aqui”. Eu fiquei. Acabei ficando na União Soviética e não me arrependo. Foram anos muito interessantes esses que eu passei lá. O primeiro ano tentando arranjar um emprego, um arranja e não arranja, acabei aceitando a bolsa que me deram lá para fazer o doutoramento. Aí comecei a fazer o trabalho sistemático já para fazer uma dissertação, e obter o título antes de voltar para o Brasil. E foi muito importante isso, porque ficou absolutamente claro que eu não fui para lá aprender subversão, fui me formar como técnica em planejamento. Voltei como doutora em planejamento econômico que me valeu esse emprego onde eu fui “a mulher mais bem paga do Brasil”, entre aspas. De fato, eu fiz lá os créditos. O sistema de ensino, o sistema de doutorado era diferente. Eu tinha que cumprir créditos em três disciplinas. Uma delas era Economia, quer dizer Planejamento da Economia Nacional, a outra era uma língua estrangeira e a terceira era filosofia, quer dizer marxismo, leninismo e tal. Então, feitos os créditos, eu podia trabalhar na dissertação. O meu orientador era o mesmo que me recebeu quando eu cheguei. O trabalho de elaboração da tese, da dissertação - que também foi uma guerra, porque eu queria estudar a experiência real e ele dizia que era muito difícil, que eu ia ser reprovada na banca, que era muito complexo, que eu não ia entender nada. Eu fiz umas três propostas, a primeira foi sobre os soviéticos, a segunda sobre Polônia, Hungria, Iugoslávia comparando com planejamento soviético. Naquela altura, por que Polônia, Hungria e Iugoslávia? Porque a Iugoslávia era um modelo diferente. Porque na Hungria e na Polônia estava se discutindo muito nos anos que eu estava lá, se havia e como se introduziriam alguns mecanismos de mercado na economia socialista. E passava por uma discussão teórica sobre o funcionamento da lei do valor na economia socialista. Então, havia uma discussão muito aberta naqueles dois países sobre como mudar o planejamento para torná-lo mais flexível. Ele também não deixou. Foi aquela “como você quer compará-los com a União Soviética, não pode”. O que acontece com todos os alunos do Brasil que vão para algum lugar, não precisa ser na União Soviética, pode ser nos Estados Unidos ou na Inglaterra, quando você vai para algum lugar desses fazer teu doutoramento, o que esse pessoal quer quando te dá bolsa, é que você fale sobre o teu país e não sobre o país deles. E foi o que aconteceu comigo, quer dizer acabaram me “forçando” a fazer uma tese sobre a experiência do planejamento no desenvolvimento histórico no Brasil. O que foi interessante, não deixou de ser, mas vocês imaginam na União Soviética fazer uma tese sobre desenvolvimento no Brasil sem dados. Foi muito difícil, como a gente fala, foi um levantamento de todas as instituições que tinham pontualmente informação sobre o Brasil. O Instituto da América Latina, o Instituto da Economia Mundial, que tinha um departamento de subdesenvolvidos, ou de economias em desenvolvimento, o Instituto de Ciências Sociais, quer dizer foi uma dificuldade muito grande para levantar o material que eu precisei para fazer a dissertação. Consegui. Foi difícil, foi uma peregrinação. Um trabalho de formiguinha para descobrir onde estavam as coisas. Mas acabei fazendo uma tese que me deu uma visão do processo do desenvolvimento brasileiro, desde os anos 30, a vinda da missão, da comissão mista Brasil-Estados Unidos, o governo Vargas 30, o governo Vargas 50, para depois chegar no Juscelino e daí para frente. Então, isso foi útil também, foi muito útil. Acabei sistematizando idéias e usando teóricos e pesquisadores soviéticos, com uma ótica não inteiramente ocidental, uma ótica diversificada. Usei todos. Mas foi interessante, porque eu incluí aquilo que não era normalmente incluído, que eram os pesquisadores soviéticos. E aí, esse processo de elaboração da tese foi um processo muito interessante, porque me fez entrar em contato com gente muito legal, muito boa, com cuca aberta, com uma boa noção das coisas, de quem eu fiquei amiga até hoje.. E eu passei a freqüentar inclusive um café, que os cientistas do Instituto Mundial faziam a cada três semanas, para trocar idéias, bater papo. E eu era membro da patota. De quem eu fiquei até hoje, quando volto para União Soviética, para Rússia, para pesquisa, vou procurar uma amiga que era brasilianista nesse instituto. E que me ajudou a editar minha tese em russo. Porque eu escrevi a tese em russo, mas em russo macarrônico de quem traduz ao pé da letra. Ela me ajudou a editar a tese. O que ela estudava naquela altura? Não me lembro. Mas tinha uma outra que estudava a função do Estado na economia brasileira, nesse instituto. Eram duas brasilianistas nesse Instituto. No Instituto da América Latina, eu também fiz boas amizades, naquela altura, procurando material nas bibliotecas que eles tinham. Trabalhei muito também naquele Instituto. Então, foi uma experiência muito agradável, essa convivência com o meio acadêmico, não acadêmico de pesquisa, Academia de Ciências da União Soviética daquele período. Foram alguns anos que me permitiram inclusive acompanhar o cotidiano da vida soviética e sentir o que era, que é uma coisa que falta para as pessoas. A União Soviética foi sempre um tema controvertido e continua sendo hoje. Porque você tinha os prós, entre os quais eu me colocava, e você tinha os contras. Então você não tinha uma análise isenta. Não dá para ser isenta, mas eu digo uma análise objetiva das coisas, de como aquela sociedade funcionava, de como viviam as pessoas que moravam naquele país. E essa vivência dos três anos lá, é uma vivência caríssima. Caríssima do ponto de vista de preciosa. Preciosa porque dá para entender a mentalidade do povo. Tanto onde eu morei, em Moscou, como quando eu fui passar férias na Geórgia, na Armênia, passei 15 dias na Armênia, como quando eu passei 15 dias numa região do Cáucaso, numa estação de águas para tratar do meu intestino, porque eu sempre tive problemas gastro-intestinais. Conheci gente do interior, portanto. Gente da região Caucasiana conheci gente da Armênia, através de um colega do Instituto, um menino que fazia o curso lá e de quem eu fiquei amiga e que me levou para casa dele. O pai, um velho coronel aposentado, stalinista até a raiz dos cabelos. E foi uma experiência notável, de passar 15 dias na casa de uma família, visitando inclusive outras pessoas na Armênia. No Cáucaso, foi divisão de quarto com uma mulher, cujo marido era diretor do Instituto de Línguas Estrangeiras numa cidadezinha pequeninha, Piatigorsk, que era uma cidadezinha tipo nossa Lindóia. Da outra vez, eu fui parar no Mar Negro, com um pessoal mais variado. Então, pude perceber, digamos assim, o comum fora do debate ideológico, o comum da vida soviética, que é uma coisa impressionante de preciosa para entender inclusive a mentalidade etc. E foram anos muito importantes, porque foram anos pós Kruschev. Foram anos, nem foram pós- Kruschev, eu peguei um pedacinho de Kruschev. Então eu peguei o degelo, peguei um pouco da abertura. Tristeza e alegria. Tristeza pelas denúncias todas, e pelo que eu vi depois. Quer dizer, acabaram os campos de trabalho forçado, o chamado Gulag, o arquipélago. Inclusive fui a algumas sessões solenes, que foram feitas em homenagem às pessoas que foram vítimas do arquipélago e numa delas esteve o Fernando Henrique. Ele estava em Moscou e eu fui com ele, numa solenidade numa fábrica de lâmpadas. O clube social dos trabalhadores fez um grande evento e tinha uma parede cheia de fotografias com flores, das vítimas do campo de concentração. Mas por outro lado você via um florescer social. Apareceram revistas que publicavam coisas antes censuradas, discussões mais abertas na imprensa, nas revistas, cinema, literatura. Houve um florescimento naquela época. E do ponto de vista econômico, do ponto de vista, digamos assim, da vida do cotidiano, era uma vida mais tranqüila, porque houve boas colheitas. O Kruschev deu muita importância ao desenvolvimento da agricultura, ele mesmo era um camponês. Então, existia a preocupação com a produção agrícola, que inclusive Kruschev criou como bandeira para aquele qüinqüênio, a quimização da agricultura. Que era a quimização da agricultura? A introdução de fertilizantes.

Foi uma época de abundância, quando me perguntam se faltava coisa, eu digo: “não”. Havia filas nos magazines como aqui. Você vai num supermercado, você vai para uma caixa, tem que entrar numa fila para ser atendida. Havia sim, alguma insuficiência de bens de consumo mais bem acabados. Então, eu me lembro de episódios, tipo precisar comprar uma bota. Então eu corria as lojas de departamentos para comprar uma bota mais bonita, que de vez em quando se importava da Espanha, da Áustria, basicamente da Espanha e da Áustria, também da Alemanha e da Itália. Custava muito caro e eu inclusive discutia com uma amiga que foi para lá exilada e eu passava os finais de semana na casa dela. E a gente discutia muito como que essas mulheres compram essa bota cara ganhando o que elas ganham. É que elas economizavam e preferiam comprar uma bota italiana pagando meio ano de economia, por exemplo, do que comprar a bota soviética que era forte, mas feia. Forte, mas feia. Então, coisas desse tipo. Roupa, o pessoal gostava de usar roupa mais bonitinha, mais bem acabada. Havia na União Soviética, em função da forma como o planejamento era feito, preocupação com a quantidade e não com a qualidade. Porque nas empresas, os diretores e trabalhadores recebiam bônus pelo cumprimento das metas e as metas eram fixadas em quantidade e não em qualidade. Então todo mundo queria produzir, produzir e produzir. Introduzir inovações era complicado, porque você tinha um tempo de adaptação e, portanto você teria que produzir menos. E ninguém queria produzir menos e perder bônus, não ganhar prêmios. Então aquela economia sofreu desse mal muito sério, que era, digamos assim, despreocupação com a qualidade, especialmente nos bens de consumo. E isso por sua vez tinha que ver com um modelo de desenvolvimento daquela economia que privilegiava sempre os bens de produção. Mesmo nos bens de produção, quando analisado o comércio, Brasil-Rússia, Brasil e União Soviética, por exemplo, nós sempre tínhamos um saldo na balança comercial, porque nós achávamos que não tínhamos o que comprar. Os equipamentos deles eram eficientes, mas eram pesadões, havia problemas de assistência técnica. Então, essa coisa da despreocupação com a qualidade, com a beleza das coisas, beleza eu estou exagerando, porque existe na poesia e na cultura muita beleza. O que eu quero dizer é que no processo de produção dos bens de consumo e em alguns bens de produção também, houve algum descuido, bastante não, algum, descuido com a qualidade e a aparência daquilo que era produzido.

 

Mulheres no Dieese
 

Eu nunca me senti diferente como mulher. Para mim, era tudo a mesma coisa. No movimento estudantil, eu era colega dos meus pares na diretoria. No trabalho, nos dois empregos que eu relatei para vocês, eu trabalhei sozinha, não tinha problema. Nessa fábrica de buzina eu fazia tudo. Já lembrei agora, depois eu fui parar numa malharia, na Barra Funda, onde também eu trabalhei com algumas pessoas. A contadora era mulher. Eu ajudava... Ali também aconteceu uma coisa muito interessante, porque eu gozava da confiança do dono, do filho do dono, que tratava muito mal aquela contadora sei lá por quais razões. E eu brigava muito. Dizia para ela que não devia aceitar esse tratamento. Um dia, ela resolveu ouvir o que eu disse e ficou em casa. Ele veio pedir que eu a substituísse e eu me recusei. Fui mandada embora. Mas, eu nunca me senti, quer dizer, eu era prestigiada. Onde eu estava, estava sendo prestigiada. Em alguns empregos eu trabalhei sozinha, em outros, esse aí eu não trabalhei sozinha, mas era prestigiada pelo que fazia. Não tinha problema de ser mulher. Na Universidade também, fui trabalhar como Mário Vagner. Meu colega lá era o Paul Singer, e nós nos dávamos bem. Acho que não havia nenhuma discriminação. Talvez, um pouquinho “os homens são mais inteligentes”, sei lá. Mas enfim, no princípio não havia discriminação que eu sentisse. Discriminação podia haver por razões de ordem ideológica, mas não pelo fato de ser mulher. E com o Albertino, muito menos. O Albertino me convidou para trabalhar com ele e se era mulher ou não era mulher... E depois, se vocês virem a história do DIEESE, o Albertino levou para lá, para trabalhar, várias mulheres, não fui só eu. Portanto da parte do Albertino, discriminação nenhuma. Da parte dos dirigentes do movimento sindical, também não encontrei discriminação nenhuma, ao contrário. Eu tenho fotografias onde eu apareço nas assembléias falando. Mesmo o pessoal considerado meio que pelego me tratava muito bem. Eu não senti discriminação nenhuma. Depois eu fui para faculdade dar aula e também não senti discriminação nenhuma. Então, é muito difícil eu falar na condição de mulher que tem, que sente alguma discriminação. Eu nunca senti. Mesmo quando eu saí do DIEESE e fui estudar fora, quando voltei fui trabalhar numa grande empresa de engenharia. Como Chefe de Departamento para fazer planejamento, ao nível do projeto. Porque a minha titulação lá fora foi de Doutora em Planejamento Econômico. Eu voltei, tinha perdido o emprego na Faculdade, tinha sido mandada embora em 64. Quando voltei não tinha emprego. Tentei recuperar a cadeira, fui aconselhada a não tentar. Isso foi em final de 67, começo de 68. Foi, portanto antes do AI-5. Mas eu não recuperei a cadeira, saí e fui trabalhar como consultora de projetos. Porque o projeto é, na verdade, o planejamento ao nível da unidade singular. Não ao nível da nação, mas ao nível de uma unidade de investimento. Fui trabalhar nessa empresa e foi no período áureo do planejamento no governo. O governo dos militares tinha uma preocupação estratégica, a gente tem que reconhecer, de fazer as coisas na base da programação, do planejamento. E nós fizemos lá na empresa grandes projetos. Eu cheguei à empresa, por indicação de um menino que veio do DIEESE. Esse menino, estava esperando eu voltar, porque ele trabalhava nessa empresa e tinha uma vaga de Chefe de Departamento, para qual ele me indicou ao Diretor da empresa. Esse Diretor da empresa é uma figura que marcou muito a minha vida, porque era uma figura absolutamente singular. Era um Engenheiro Hidráulico,, uma figura humana excepcional, trabalhou no sertão com água, no sertão no interior do Brasil. E nos contava histórias dos nossos sertanejos, nos vários serões que nós fizemos para terminar projetos. Então, era uma figura muito ímpar, criativa, inteligente. Foi uma experiência muito notável. Eu dirigia lá um Departamento de Economia e Sociologia. Quando eu cheguei, indicada pelo rapaz, fui contratada pelo dono, que me recebeu de maneira talvez agressiva, posso dizer, relativamente agressiva: “a senhora veja bem se é isso que a senhora quer fazer para gente não perder tempo”. Mais ou menos assim. E depois que ficaram acertadas as coisas, o dono da empresa pediu para o auxiliar direto do chefe, um japonês, o Yuso Sato para me apresentar aos demais chefes de departamento. Este era um hábito do dono da empresa, quando entrava um técnico novo em qualquer área. A empresa era muito grande, tinha engenharia hidráulica, tinha fotos aéreas, tinha engenharia rodoviária, engenharia aeroviária. Era uma senhora empresa. Funcionava, quando eu entrei, na Avenida Paulista e depois mudou-se para um prédio próprio na Rua Afonso Celso, onde o prédio está até hoje. Por questiúnculas de ordem jurídica, não pode vender, então está lá meio que abandonado. Mas, o dono tinha por regra, quando entrava algum funcionário de formação universitária, fazer correr os departamentos e se apresentar para os chefes de departamento. E aí eu fui recebida com piadas. Foi a única vez que eu senti discriminação. Os homens, um deles: “a senhora faz economia? Sabe fazer bolo?” Um deles. O outro... Enfim, foram poucos comentários, assim de gente ignorante, diria assim para você. Mas passou e ao longo do tempo, eu fui demonstrando capacidade de trabalho, capacidade de direção e aí isso tudo acabou. Quer dizer, isso tudo foi um momento e se eles tiveram algum ceticismo em relação ao meu comando, perderam-no. Porque eu me tornei amicíssima de todos eles ao longo do tempo. Então eu posso dizer que eu sou uma mulher que não sofreu discriminação .Havia até piadas, não lá na empresa, mas no círculo da minha profissão. Havia uma outra empresa menor, de um cidadão - também não lembro o nome dele, ficou muito meu amigo – que vivia gozando, porque nas concorrências para ganhar os projetos públicos, quando a empresa entrava, você tinha que apresentar proposta do trabalho e o custo discriminado. Porque algumas propostas eram preço fixo e outras propostas eram por hora trabalhada mais um over head, uma taxa de administração do projeto. Neste caso, se entrava com o nome dos funcionários, o salário que a gente ganhava, para empresa que contratasse o trabalho pagar. Acho que o dono da empresa inflava os salários; e o over head era bastante elevado, pois eu era tida como a mulher mais bem paga do Brasil, porque eu tinha um salário multiplicado por 2.4. Tinha que estar lá em cima; sob esse aspecto, eu posso dizer para vocês que mesmo fora, eu fui muito reconhecida. Tanto dentro da empresa como fora, porque eu ia discutir os projetos. Quando a gente apresentava os projetos, ou quando ia saber com o cliente a direção e tal, eu era muito respeitada. Disso eu não posso me queixar.

 

Trajetória no Dieese
 

O movimento sindical estava muito interessado em ter um índice do custo de vida para as negociações. Era a única coisa que eles tinham na cabeça, na verdade, quando criaram o DIEESE. Não confiavam no índice da Prefeitura e queriam que nós fizéssemos um índice do custo de vida da classe trabalhadora. Quando eu comecei a trabalhar nós estávamos no Sindicato dos Bancários, no Prédio Martinelli, numa sala escura. Grande, mas escura. Não tinha nada muito bonito. E trabalhávamos com o que a gente tinha. Eu brincava muito, porque nós tínhamos uma máquina Olivetti manual muito antiga, que chamávamos de jacaré. O pessoal dos sindicatos, alguns pagavam, outros não pagavam. Era difícil arrecadar a mensalidade. Então, nós vivíamos sempre apertados, tínhamos poucos funcionários. Depois o Albertino trouxe a Sara Chucid, socióloga; trouxe a Mariana Batich, socióloga. Eu, economista, cercada por sociólogos, como uma ilha, por todos os lados. Naquele momento, me deu muita vontade de fazer sociologia também. Um pouco de antropologia, um pouco de etnografia por conta da minha origem judaica. Acabei não fazendo, porque minha vida não permitiu. Trabalhando, e o DIEESE era muito absorvente, e eu dava aulas na faculdade. Quer dizer, dava aulas na faculdade e trabalhava no DIEESE à tarde. Não sobrava tempo para muito mais coisas. Nós começamos fazendo o índice do custo de vida. O Albertino já tinha feito através dos sindicatos o levantamento daquilo que se chamou a família padrão. Para identificar uma família de pai, mãe, dois ou três filhos, não me lembro mais, para identificar uma família padrão para fazer o índice. Então, a partir da seleção desse levantamento, que ele fez com ajuda do pessoal dos sindicatos, nós identificamos as famílias para passar as cadernetas e levantar o consumo diário daquelas famílias durante um mês. E aí, nós contamos com a ajuda muito importante de um estatístico, chamado Salomão Shatan, que morreu há uns dois anos. Nos ajudou na amostragem, na parte estatística etc. Aliás, me deixa voltar um pouco para trás.

Quando fui para o DIEESE, o Albertino queria me treinar e me deu paralelo ao trabalho do índice de custo de vida, esse que a gente fazia, porque dependia de vir respostas e tal, eu fiz pesquisa sobre mercado de produtos alimentícios de base. Então, fiz pesquisa sobre o mercado da carne, comecei com o mercado da carne. Houve até polêmica com um jornalista da Folha que era da Secretaria da Agricultura. Depois, fiz alguma coisa sobre o mercado do leite. Isso me levou a passar algum período na Secretaria de Agricultura, no Departamento de Economia, que ainda era ali no Largo do Café, uma ruazinha estreita que vai dar na Bolsa de Valores. Eu fazia lá pesquisa, levantava números lá para trabalhar. Depois mexemos com índice de custo de vida quase que exclusivamente. Eu passei a fazer, aí me ajudou um professor da faculdade, Luiz de Freitas Bueno, a montar um quadrinho, uma planilha que permitia fazer o cálculo sem grandes problemas, com todos os itens e pesos etc. Eu levantava preços, calculava, imprimia e editava o boletim. Fazíamos tudo naquela altura. Éramos muito poucos e eu praticamente fazia tudo. Ficou mais puxado ainda quando o Albertino foi embora, porque aí eu assumi a direção técnica. Quando o Albertino saiu, a responsabilidade da Revista ficou comigo, além de toda carga de trabalho do DIEESE. Foi puxado, muito puxado. Mas ali a gente já tinha crescido alguma coisa, já tinha algum recurso, já tinha algum apoio. A Revista havia se tornado um instrumento de visibilidade do DIEESE. O Boletim já foi, mas a Revista para o meio acadêmico era importante. Então, além do custo de vida, nós passamos a fazer análise de balanços. Essa era a minha tarefa. Nós passamos a fazer ficha de empresas ou sociedades anônimas, em que se analisava a evolução, o balanço das empresas a cada ano. Então a ficha dava a evolução da empresa a cada ano, de acordo com a sua rentabilidade. Esse levantamento da rentabilidade por setor, também foi um segundo instrumento, além do custo de vida, levado à mesa de negociações. Quando os patrões diziam: “não posso pagar. O setor vai mal”, estava lá o levantamento que mostrava qual era a lucratividade, a rentabilidade da empresa naquele período. Esse era um trabalho que eu também fiz. Depois disso, nós começamos a fazer, essa era perspectiva que o Albertino tinha, de criar, não (era) bem uma Universidade Sindical, mas ele tinha na cabeça criar um Instituto do Trabalho que fosse um repositório de informações sobre o movimento sindical, sobre os trabalhadores e etc. Fazer com que os acadêmicos que mexessem com a parte social do trabalho, que se dedicassem ao estudo do trabalho, que tivessem um repositório de informações sobre o movimento sindical. Quer dizer, ele achava importante que você, para falar do movimento sindical, conhecesse o movimento sindical. Nós tínhamos lá, não só todos os acordos coletivos que eram feitos pelos sindicatos, mas nós levantávamos com dados do Ministério do Trabalho, nós levantávamos empregos, contratação e dispensa de trabalhadores. Acho que através da relação dos dois terços, porque havia uma lei que você tinha que ter pelo menos dois terços de trabalhadores nacionais. Não podia contratar a totalidade, não podia ter mais que um terço de estrangeiros. Com base nessa relação, nós fizemos esse levantamento também de acompanhamento de emprego, dispensa etc. Depois nós fizemos levantamentos das greves. Nós tínhamos arquivado greves, acordos coletivos, nós tínhamos empregos e desempregos e tínhamos recortes, entrevistas do pessoal do movimento sindical. Então isso era uma coisa que a gente acompanhava, tendo em vista essa perspectiva de deixar o movimento sindical com o repositório de informações que a academia pudesse usar. E a revista vinha de encontro, porque eram acadêmicos trabalhando com o movimento sindical, que faziam artigos que serviam para levar ao meio acadêmico aquilo que a gente tinha. Só que a Revista não durou muito tempo, porque aí veio o golpe militar.

A perspectiva do Albertino, que era um acadêmico, era de que devia haver um entrosamento entre a “intelligentsia” e o movimento sindical. Na medida em que você está mexendo com o movimento sindical, você precisa ter informações que permitam alimentar a academia, assim como a academia forneceu o Albertino, forneceu a Lenina, depois vai fornecer outros intelectuais que estão à testa do trabalho técnico. Esse é um trabalho que os líderes sindicais não podem fazer, porque demanda formação técnica. Então, há uma cooperação dos dois lados, que permite aos acadêmicos conhecerem a massa com quem estão trabalhando, que é o movimento sindical e permite ao movimento sindical receber as contribuições. Houve um entrosamento com a academia. Daí a preocupação de além de ser suporte do movimento sindical, ter a preocupação não imediata, digamos assim, das lutas sindicais, mas de deixar o movimento sindical embasado em alguma coisa a mais. Então, o histórico do movimento sindical, as negociações coletivas, o emprego e desemprego, todas as informações que constavam do arquivo naquela altura.

Eu acho que a criação do DIEESE e o período em que nós nele trabalhamos, o Albertino e eu, foi um período muito importante. Porque se criou uma instituição que pela primeira vez permitiu aos trabalhadores negociar de igual para igual com os sindicatos patronais. Então foi uma primeira vez em que você, quer dizer, que os sindicatos constituíram um órgão técnico de assessoria, porque não havia. Quer dizer, os sindicatos não tinham uma assessoria e isso foi muito importante de certa forma, porque criou-se uma Instituição que hoje faz 50 anos e que se mantém como um instrumento importante de assessoria dentro do movimento sindical. Acho que é parte integrante do movimento sindical, numa função fundamental.

 

Desafios
 

Acho que o desafio do DIEESE é muito grande por conta das transformações que o sistema capitalista está atravessando. Nós hoje vivemos um capitalismo trans-nacionalizado e um capitalismo que se apóia numa inovação tecnológica, cuja característica fundamental é a rapidez com que ela se inova continuamente. Que torna difícil à sociedade como um todo se ajustar a essa velocidade com que a inovação se faz. E ela tem uma característica fundamental que é a exclusão do trabalho. A exclusão do trabalho tem uma dupla cara. Uma é a exclusão direta, quer dizer, não tem emprego. E a outra é precarização do trabalho, a informalização do trabalho. O trabalhador passa a perder garantias. E a linguagem que você ouve hoje é que se precisa fazer uma reforma trabalhista. E é mais no sentido de eliminar tudo aquilo que o trabalhador conquistou ao longo de dezenas de anos. E não é só no Brasil, no mundo todo isso acontece. Porque esse capitalismo hoje é um capitalismo transnacional, apoiado na inovação tecnológica. Na medida em que você tem a precarização do trabalho, o trabalhador não tem sequer a preocupação de pagar a previdência, o que eu acho que é uma bomba relógio que vai estourar lá na frente. Então, ele é precário, vive de bicos, ele está afastado do movimento sindical. O movimento sindical se enfraquece, não tem força. O DIEESE deveria através do entrosamente com o mundo acadêmico, discutir seriamente essa questão. Não ficar só na discussão de habitação, salários, mas discutir como os trabalhadores têm que se organizar para manter as conquistas de séculos. Não é uma questão de agora. Como estamos em campanha eleitora, não há nenhum dos candidatos que deixe de falar em igualdade, acabar com a desigualdade, justiça e não sei que mais. Acho que é isso que está faltando ao movimento sindical e acho que o papel do DIEESE é despertar essa discussão. E esse é um grande desafio, porque afinal de contas o DIEESE é uma perna do movimento sindical, uma assessoria do movimento sindical, se apóia no movimento sindical como instituição, digamos assim, sobrevivente do movimento sindical. E o movimento sindical está fraco, está perdendo força. Dificilmente se faz greve, porque a greve não leva a ganhar grandes coisas. Você acompanha os sindicatos nesse movimento de trans-nacionalização, possibilitada e marcada pela inexistência de fronteiras para o capital. Tanto o capital financeiro como o capital produtivo. E a empresa vai para onde lhe convém, para onde ela pode reduzir custos e onde ela encontra mercado para vender. Não é como antigamente, onde as empresas dos países desenvolvidos iam para África ou para Ásia para pegar matérias primas, colonizar. Não. Hoje elas vão, instalam suas empresas lá, usam a mão-de-obra, usam a matéria prima e exportam o produto acabado. S você pega um carro da Volkswagen, ele não é produzido num lugar só. Ele é produzido, peças e componentes, onde existem vantagens de ser produzido. E vai montar o carro onde ele fica próximo dos mercados de vendas dele. Existe um centro diretor pequeno, uma cabeça. Hoje você não tem uma empresa, você tem o que se chama empresa rede. Tem uma empresa que cuida da parte estratégia e terceiriza ou delega para empresas menores, especializadas, tarefas que não fazem parte do eixo estratégico fundamental da empresa. E essas partes podem ser localizadas em qualquer parte do mundo. A única coisa que não é volátil no capitalismo trans-nacionalizado é a mão-de-obra. Pois a mão-de-obra que sai de um país onde ela vive mal, trabalhador africano, trabalhador asiático, que às vezes vai ilegalmente, clandestino para um país diferente, aí se depara com os trabalhadores que não querem um concorrente e forçam políticas nacionais, nesses países, que impedem a imigração. Trabalhadores que chegam na Espanha do Marrocos, nem descem do navio. Voltam imediatamente, porque eles são mandados embora. Na Itália, na França, embora na França menos. Na França você tem uma população que está sendo problema hoje, uma população muçulmana que imigrou da África branca, antigas colônias francesas, que estão querendo se integrar e não podem. São os trabalhadores que fazem o serviço sujo, esses que a gente chama informais, que são os muçulmanos etc. Então, você tem de um lado restrições à política migratória e quando se faz alguma coisa como nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Itália, na Espanha que os imigrantes conseguem furar isso e criar uma base de população razoável, o que está começando a se criar hoje nesses países é o racismo. Então, nós estamos vivendo num mundo complicado e isso é um desafio muito grande. E nos cabe, quer dizer, caberia ao DIEESE, eu falei isso não tão desenvolvido como estou falando aqui, mas caberia ao DIEESE pensar seriamente, seriamente na questão do trabalhador e do trabalho hoje. Mesmo nos países da social-democracia estão fazendo voltar para trás tudo aquilo que foi resultado de anos de lutas do movimento sindical e que contribuíram para o fortalecimento do movimento sindical. Hoje estão voltando para trás e tornando tudo uma coisa fluida. Que é fruto dessa organização do capitalismo hoje e os trabalhadores têm que dar uma resposta. Esse é um desafio que alguns entendem como desafio da esquerda e que eu entendo como desafio da classe trabalhadora e dos sindicatos como um todo. E aí o DIEESE tem sim um papel muito significativo para desempenhar, na medida em que ele tem um pé no movimento sindical e um pé na academia. Juntando essas duas forças, as cabeças têm que pensar.

 

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