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Página Inicial Navegação Nossas Histórias José Maria de Almeida

José Maria de Almeida

semretratoHistória de Vida

Identificação

Meu nome José Maria de Almeida. Eu nasci em Santa Albertina, que fica no extremo norte do Estado de São Paulo, divisa com Minas Gerais no dia 2 de outubro de 1957.



Família

Meu pai chamava-se Clemente Alves de Almeida e minha mãe Sebastiana Pessopani Rodrigues. Eu nasci num sítio arrendado pelo meu pai. Trabalhávamos na roça, naquele regime de arrendamento que existia. Lembro da minha avó materna que se chamava Alzira e morreu quando eu era ainda muito criança. Tenho dez irmãos no total. Tinha cinco por parte de pai, três por parte de mãe. Meu pai casou duas vezes e minha mãe também casou duas vezes, e do segundo casamento deles nasceram eu e o meu irmão mais velho, que mora em Santo André.



Infância

Uma parte do meu período de infância pude viver em Santa Albertina. Lá havia mais convivência. Como toda cidade pequena, a convivência entre as pessoas é maior. Quando mudamos do sítio para a cidade eu tinha sete anos. Ajudava muito pouco na roça, mas os meus irmãos mais velhos trabalhavam. Naquela época, trabalho de pequena propriedade era uma coisa dura. Todo mundo ia de madrugada para a roça, no escuro ainda, para aproveitar o clima, porque a região lá é muito quente. As pessoas saíam de casa, no escuro ainda, para trabalhar e ficavam até umas três, quatro horas da tarde. Plantávamos, principalmente arroz. Um pouco de milho, mas era mais arroz.

Eu já trabalhava, quando mudamos para a cidade grande. Trabalhava de engraxar sapato porque eu gostava de ganhar meu dinheiro. Saía para brincar com meus amigos, voltava e engraxava de novo. Era uma coisa que eu controlava mais a minha vida. Havia uma possibilidade maior, apesar do trabalho e das condições difíceis da vida, de se divertir um pouco, de brincar.

Em Santo André, viemos morar em um bairro periférico da cidade. Como todo bairro periférico aqui da Grande São Paulo, era uma região dormitório, não tinha indústria. Para nós era uma coisa enorme, monumental, porque a gente veio de uma cidade, Santa Albertina, que deve ter hoje uns 5 mil habitantes. Naquela época, tinha um pouquinho mais, juntando a zona rural dava uns 15 mil habitantes, mas era muito pequeno. A diferença de lá para Santo André, apesar de ser periferia e não ter muita coisa, para nós era muito grande. Era um bairro desses de periferia como qualquer um daqui da região da Grande São Paulo hoje.

Assim que mudamos, todo mundo tinha que trabalhar, porque nós não tínhamos grana. Meu pai abriu uma verduraria, uma espécie de sacolão, só que bem pequenininho. Eu vinha com ele de madrugada no mercado, Mercadão Municipal de São Paulo, e comprávamos fruta, verdura, essas coisas e voltava para vender. Quando estava clareando o dia, a gente estava voltando.

Em Santo André, não dava tempo para conviver com a molecada, a convivência que a gente tinha era na escola, no ginásio, à noite, depois no colégio. Era muito pequena porque uma parte trabalhava. Mas uma parte não trabalhava e acabou se envolvendo, como acontece em todo lugar, com tráfico, essas coisas. Tinha as festinhas, eu não gostava muito de festa, eu gostava de jogar. Eu sempre tive uma tendência a ser muito responsável com as minhas coisas: se eu trabalhava, eu trabalhava. Eu levava muito a sério as coisas que eu fazia. Tanto no trabalho quanto no estudo.

 

Trajetória Profissional

Quando eu tinha 13 anos, arrumei um emprego de ajudante de sapateiro, Senhor Manoel que era o sapateiro do bairro. Eu trabalhei oito meses com ele. Eu ficava o dia inteiro trabalhando, voltava e ia para escola à noite. Depois, saí e arrumei emprego numa fábrica de elásticos. Meu primeiro emprego registrado foi esse. Isso foi no comecinho de 71, na fábrica de elástico Paris, onde trabalhei por quase um ano.

Em 74, comecei a trabalhar na Laminação Nacional de Metais, que foi a primeira fábrica metalúrgica onde trabalhei. A Laminação era uma fábrica grande do setor metalúrgico de Santo André, mas eu fazia SENAI, então eu ficava cinco meses no SENAI, dois meses na fábrica, cinco meses no SENAI, dois meses na fábrica, era assim. E em 76, eu terminei o segundo grau. Fiz o curso do SENAI de fresador. Trabalhei dois anos. Saí da Laminação para ir para a Cofap, em 78. Comecinho de 78. Nesse período, praticamente todo, eu trabalhava de dia e estudava à noite.

A minha diversão era jogar, eu comecei a me acostumar a jogar baralho. A casa que a gente alugou - a segunda casa em que eu morei em Camilópolis - lá em Santo André era uma casa maior, e minha mãe alugou alguns quartos como uma espécie de pensão. As pessoas vinham do interior para ficar lá e uma parte desse povo jogava, e eu comecei a jogar com eles. Meu irmão também jogava baralho, meu pai também gostava, e eu me acostumei com aquilo. Era a diversão que tinha. Às vezes, passávamos a noite inteira jogando, fim de semana. Depois eu comecei a jogar bilhar com meu irmão. Um pouco a minha diversão era essa, o jogo. Depois começamos a jogar a dinheiro. Todo fim de semana, eu saía de casa na sexta-feira de noite e voltava só domingo de noite. Passava o final de semana no bar, jogando. Eu e meu irmão, Jaime. Não gostava de ir aos bailinhos, nas festas que o povo da escola organizava. Não era muito o meu jeito.



Formação Acadêmica

Eu comecei a estudar em Santa Albertina. Lá era uma escola muito provinciana, havia uma convivência melhor até com os próprios professores, porque todo mundo conhecia todo mundo, mas o nível era mais baixo do que aqui. Nós viemos para São Paulo porque a escola pública que tinha lá era só até o ginásio. Para fazer o correspondente ao segundo grau de hoje, o colegial, tinha que vir para cá. Saímos de lá também pelo problema de emprego. Era uma cidade pequena e não havia emprego. Nós mudamos para Santo André em 70.

Eu lembro que 70 foi o ano da Copa do Mundo e foi o primeiro ano em que eu estudei aqui em Santo André. Eu tinha essa coisa comigo de não fazer mal o que estava fazendo. Eu passava aquele período todo, enquanto o pessoal se divertia vendo o jogo, eu ficava estudando porque para mim foi muito difícil me adaptar ao nível de ensino. Estudei demais, particularmente 70, 71. Nossa! Foi muito pesado. E também a forma de ser das pessoas, das pessoas com quem eu convivia, dos alunos, dos meninos que estudavam na escola comigo. Porque era um modo de vida bastante diferente em relação ao que eu estava acostumado. Acho que por isso nunca consegui me enturmar direito. Acabei me localizando de uma outra forma na convivência social, digamos assim, daquele período lá. Mas não era fácil. A lembrança que eu tenho desse período é isso. Que eu tinha que estudar muito, que eu ficava com muito medo de não fazer as coisas direito, era um problema. E trabalhava o dia inteiro, então não tinha muito tempo. O tempo que tinha, tinha que estudar.

Um fato que marcou na escola foi quando mataram o Herzog [Wladimir Herzog] aqui em São Paulo. Tinha um professor que eu não gostava. Era o professor de matemática, chamava Pedro. Eu o achava muito bravo; muito mal-humorado. Mas quando mataram o Herzog, ele fez um comentário na sala de aula sobre isso. Pelo jeito, ele tinha consciência política, e fez um comentário sobre o absurdo que era aquilo que tinha acontecido e aquilo me marcou. Porque era uma dimensão do mundo do qual eu não conhecia, não tinha contato, não tinha noção de que existia uma coisa dessas. Quando ele falou, me chamou a atenção para isso. Mas eu não passei a ter um contato com a militância política nesse momento. Eu vim a ter contato com a atividade política mais tarde, por uma outra via. Depois do colégio eu queria fazer engenharia na USP. Engenharia mecânica. O único curso de engenharia mecânica que tinha de graça era na Politécnica da USP e eu não podia porque era o dia inteiro. Tinha que parar de trabalhar e eu não podia. E tinha o curso de engenharia, à noite, na FEI, em São Bernardo, mas era muito caro e eu não tinha grana para pagar. Acabei fazendo o vestibular para o curso de Matemática, na Fundação Santo André, que era uma faculdade pública da região.

 

Militância Política
 

Nos primeiros dias da faculdade, na Fundação Santo André, teve a calourada e tinha dois tipos diferentes. Tinha o povo das Ciências Sociais, da parte de Humanas, que fazia debates, uma coisa mais politizada; e tinha o povo da minha área, matemática, que era aquela coisa, cortar o cabelo, pintar a cara, cortar a barba. Eu tinha barba nessa época. Fui na atividade da calourada. Participei do debate, conversei com as pessoas que falavam aquela coisa da classe operária. Me lembro que ainda fiz uma intervenção. Falei: “Olha, lá na fábrica, os operários não pensam nada disso que vocês estão falando aí, não. Lá o pessoal tem medo de tudo, lá não acontece nada, não”. Saí do debate e veio o pessoal da matemática que queria cortar minha barba. Deu um “barraco” dos infernos porque eu queria brigar com os caras. Bom, virou uma confusão até chegar a turma do “deixa disso” e separar. Não cortaram a minha barba, mas eu acabei conhecendo o povo das Ciências Sociais que tinha militância política. Lembro do Félix, o outro menino, eu acho que era Martin, e a gente começou a conversar. Eles disseram que conheciam gente que trabalhava em fábrica e que se reuniam na Igreja do Taboão, em São Mateus, na Zona Leste de São Paulo. Perguntaram se eu queria participar e eu comecei a participar da atividade política a partir desse processo. Participei de algumas reuniões com eles em São Mateus, final de fevereiro, comecinho de março.

Em abril, resolvemos fazer um boletim sobre o Primeiro de Maio. Era um boletim que falava dos mártires de Chicago, o que deu início à comemoração do Primeiro de Maio. Fomos distribuir no dia 28 de abril e fomos presos. Eu e mais dois meninos, o Celso Brambilla e a Marcinha, que é lá da região de Campinas. Os dois eram militantes da Liga Operária, uma organização clandestina que havia naquele momento. Vim conhecer a Liga Operária na cadeia.

Nós tínhamos todo um esquema de segurança que, por erro de um companheiro, não funcionou. Contamos para a polícia uma historinha, uma bobagem, que nós tínhamos inventado entre nós para dizer, se nós fossemos presos. Era uma coisa boba, mas como nenhum de nós tinha ficha na polícia, ficamos três dias presos sem acontecer nada, até que descobriram na casa de um menino, do Celso, um monte de material político. Então, eles tinham uma prova de que pelo menos um de nós era militante de uma organização clandestina. Nós ficamos três dias apanhando para saber que diabo de Liga Operária era essa. O Celso, inclusive, ficou com muitas seqüelas, ele perdeu um ouvido, coitado. Deram um “telefone” nele, ele perdeu o tímpano todo, não teve como recuperar. A Marcinha, maltrataram muito. Nós apanhamos três dias. Até o governo do Estado [de São Paulo] reconhecer que a gente estava preso. Quando isso aconteceu pararam de bater. Já estava naquele período de transição, de crise da ditadura, e eles tinham que apresentar o preso ao advogado até oito dias depois da prisão. Quando reconheceram que estávamos presos, tinham uma semana para nos apresentar para o advogado. Aí começaram a passar pomada, particularmente nas mãos, no pé, a palma da mão da gente estava preta de tanto tomar palmatória. Eles passavam pomada para sumir as marcas. Ao fim, nós ficamos uns 40 dias presos no DOPS por conta desse panfleto. Foi uma experiência muito ruim nesse sentido, muito ruim. Em mim, pelo menos, gerou uma revolta. Eu acho que o compromisso que eu tenho até hoje com a militância tem muito a ver com isso. Tem muito a ver com esse processo.

O meu primeiro contato com uma organização política foi porque eu ia nas reuniões do Sindicato (dos Metalúrgicos de Santo André) em 76, 77. Eu participava das assembléias do Sindicato, mas não tinha relação com ninguém. Era muito pouca atividade sindical que havia. Eu fiquei conhecendo a Liga Operária na cadeia. Depois que eu saí da cadeia, eu comecei a militar na Liga Operária, corrente política em que eu milito até hoje. Mas a minha militância política mesmo começou aí. Sindicalmente, comecei a militar quando eu estava na Laminação Nacional de Metais, no Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André. Começou a ter mais atividade mesmo no Sindicato depois de 76, na campanha salarial de 77. Nesse período, foi uma campanha um pouquinho mais animada, já teve assembléias. Mas mobilização mesmo, greve, só teve em 78.

Em 78, eu tinha saído da Laminação e estava na Cofap, também em Santo André. Comecei a militar por essa via. Foi dessa forma. A primeira experiência marcante foi na própria Laminação. Porque como eu não tinha uma militância organizada, eu também não discutia de forma sistemática com as pessoas que trabalhavam comigo. E ninguém sabia das coisas que a gente fazia. Nessa época, quando começamos a fazer essas reuniões no Taboão, havia todo um cuidado com a segurança. Você não comentava das reuniões que se faziam. Eu fiquei preso em final de abril, o mês de maio todo e voltei para a Laminação em junho. O velho Pignatari havia morrido e tinha deixado a fábrica de herança para aquele Pignatari que era um artista plástico, que não quis se meter na fábrica. Largou para a gerência controlar. E a gerência da ferramentaria, onde eu trabalhava, tinha um engenheiro que acabara de chegar da Itália. Ele falou: “Eu não quero me meter nessas coisas aqui; não entendo como funciona esse negócio no Brasil. Na Itália não é assim, mas se você quiser continuar trabalhando, pode continuar.” Então, não me mandaram embora. Chegando em junho, no dia dez que era o dia do pagamento, eu não recebi pagamento porque eu fiquei mais de um mês todinho preso. O pessoal da seção fez uma listinha e me pagou um salário. A minha primeira experiência sindical com as pessoas foi essa. As pessoas não sabiam o que eu estava fazendo, mas achavam que era a favor delas e de alguma forma elas queriam ajudar também.

 

Trajetória Sindical

Depois que eu saí da cadeia em 77, eu segui militando no Sindicato em Santo André. Na verdade, eu comecei a militar quase um ano depois, porque depois que eu saí da cadeia, eu fui numa reunião que era com a militância da Liga Operária. Isso foi um mês depois que eu saí da cadeia, final de junho. Só que eu fui à reunião durante o dia. À noite minha irmã trabalhava em uma fábrica no Ipiranga. Ela chegou em casa chorando falando que a polícia tinha ligado para ela dizendo que eu estava em reunião e que iam me matar. Nós chegamos à conclusão óbvia de que eu estava sendo seguido e não dava para ir à reunião nenhuma porque poderia comprometer todo mundo. Assim, por opção minha e dos companheiros, me desvinculei até o julgamento na Justiça Militar, em São Paulo, que foi no final de 77. A partir daí comecei a militar mesmo na Liga Operária que depois se transformou na Convergência Socialista, em 78.

Em 77, a gente acabou não fazendo greve, não houve condição. Em 78, também não houve uma greve geral da categoria. Mas, depois do acordo assinado, começaram as greves, por empresa, para tentar recuperar uma parte da perda que nós tivemos. Nesse momento, eu trabalhava na Cofap e ajudei a organizar a greve da Cofap junto com um grupo de companheiros. Nós tínhamos três ou quatro companheiros dentro da fábrica, não era fácil organizar, porque a gente não tinha um grupo grande organizado.

Alguns diretores do Sindicato ajudavam, outros eram muito complicados, e a gente não tinha como falar com as pessoas abertamente. A nossa greve de 78, foi feita da seguinte forma: pedimos para os diretores do Sindicato que toparam ajudar a gente e eles imprimiram um “mosquitinho”, onde estava escrita uma provocação. Dizia que a fábrica de cobertores Parahyba, que era de São José dos Campos, tinha comprado a Cofap para pegar os carneiros para fazer cobertor, porque só tinha carneiro na fábrica. Pegamos isso, entramos cinco horas, o horário do pessoal era cinco e meia da manhã, colocamos no armário das pessoas e às dez horas da manhã, a fábrica estava parada porque ficou todo mundo revoltado. E parou. Parou a fermentaria, depois parou a fábrica toda, mantivemos a fábrica parada uns quatro dias e conseguimos 10% de aumento. Na realidade essas greves foram desencadeadas pela greve da Scania, em maio de 78.

Depois fizemos a primeira campanha salarial unificada do Estado de São Paulo, que gerou uma greve unificada do setor metalúrgico, com base na bandeira dos 34,1% que nós tínhamos perdido pela manipulação dos índices por parte do governo. Nós estávamos começando naquele momento. Havia uma parte dos dirigentes do Sindicato que militavam há mais tempo, o caso do Lula [Luiz Inácio da Silva], que estava desde 69 no Sindicato; o Marcílio [Benedito Marcílio], em Santo André, que estava no Sindicato há um certo tempo, mas o pessoal que começou a militar naquele momento começou a militar em torno de uma bandeira que tinha a ver com o trabalho do DIEESE, de buscar fazer um levantamento de informações que pudesse dar base para a luta. Dar consistência, digamos assim, para aquilo que a gente reivindicava.

No Sindicato, a coisa foi evoluindo, particularmente a partir das greves que nós fizemos em 78, e essas coisas foram se combinando: a militância sindical com a militância política. A análise que fazíamos era de que tinha greve de metalúrgico, tinha greve de professores, tinha greve de coveiro. Em 78, teve até greve de coveiro aqui em São Paulo, mais no final do ano. Teve greve de tudo quanto é categoria e a reivindicação era basicamente a mesma: aumento de salário. Quando muito, alguma outra coisa que tinha a ver com condição de trabalho. As greves acabavam se politizando rapidamente porque a ditadura, o regime intervinha a favor do empresário, então a greve se politizava, mas o mote dela era aumento de salário, era melhor condição de trabalho. E um processo que começou no setor metalúrgico, mas se estendeu para tudo quanto é categoria e para tudo que é região do país. E o que a gente dizia? “Está todo mundo lutando pela mesma coisa, mas ‘cada um por si e Deus por todos.” Então era preciso ver uma forma de unir. Daí que surgiu a idéia de construir uma Central Sindical.

Em 83, eu já procurei trabalho fora do ABC, já não conseguia mais emprego na região. Eu nunca fui diretor de Sindicato neste período. Eu era sempre eleito pela Assembléia para a Comissão de Salários, depois para Comando de Greve, quando tinha a greve, eu participava dessa forma, como militante. Então, não tinha estabilidade no emprego, era uma confusão dos infernos a cada emprego que você perdia. A vantagem, naquela época, era que tinha muito emprego. Mas tinha o problema da lista que eles faziam. Eles telefonavam para o emprego anterior para perguntar por que você tinha saído de lá. O que a gente fazia? Quando eu perdia o emprego em uma fábrica, tirava outra carteira no Ministério do Trabalho e mandava fazer um carimbo. A gente via uma fábrica pequena, normalmente que tivesse fechado recentemente, fazia o carimbo com o nome da fábrica. Eu mesmo carimbava, fazia os registros, os cálculos e colocava lá três anos de serviço na fábrica e ia com essa carteira procurar “trampo”. Daí, os caras não conseguiam ligar porque a fábrica não existia mais. Era assim, registrava e depois jogava aquela carteira fora. Era uma confusão. Se eu tiver que entrar com documento para me aposentar, eu tenho seis ou sete carteiras que eu não posso apresentar em lugar nenhum porque uma parte delas é falsificada. E a gente fazia para todo mundo. Eu mesmo fazia para o pessoal que era ativista com a gente, a gente arrumava “trampo” assim. Mas vai chegando um ponto que não tem mais jeito. Por exemplo, você chega na porta da fábrica e o guarda já te conhece, aí não tem mais jeito. Foi aí que eu vim para São Paulo, para a TRW e depois fui para Minas Gerais. Militei, na região do ABC, entre os anos 75, 76 até 83; depois, vim para São Paulo. Participei do Congresso de fundação da CUT, em 83, e depois fui para Minas Gerais.

Eu fui para ficar uns 15 dias e estou lá até hoje. Eu fui para ajudar os companheiros dos sindicatos metalúrgicos e da oposição a se organizarem para a disputa na eleição do Sindicato, em 84. Teve eleição lá, aqui no Sindicato de São Paulo e no Sindicato de Campinas. Todas em 84.

Nós perdemos em Campinas, perdemos em São Paulo, mas lá nós ganhamos. E como ganhamos! Os companheiros pediram para ficar um pouco mais para ajudar a organizar as coisas. Fui ficando um pouco mais, um pouco mais, acabei ficando lá. Arrumei um “trampo”, depois entrei na diretoria do Sindicato, em 87 ou 89, já não me lembro. Fiquei na direção do Sindicato até 91, depois eu vim para a executiva da CUT. Saí da direção do Sindicato para não ficar acumulando as coisas e comecei a ficar mais tempo em São Paulo, de novo, porque a CUT funcionava aqui. Mas eu militei no Sindicato dos Metalúrgicos (de Belo Horizonte e Contagem) em Minas, desde que eu fui para lá. Teve umas coisas muito legais nesse período. Foi um processo muito legal. Uma das primeiras coisas que a gente fez lá no Sindicato foi reestruturar o Sindicato para voltar a sua atuação para uma atividade de mobilização, de organização da categoria, de formação. Depois montamos a subseção do DIEESE lá também.

Quando a gente ganhou o Sindicato, houve lutas muito importantes. Teve uma greve geral em 85, que foi muito grande na categoria. Durou quase 40 dias e tivemos enfrentamentos muito duros com a polícia. A relação com a polícia lá é muito diferente daqui de São Paulo. Isso tem a ver com o período que vivemos na época da decadência da ditadura e as mobilizações no ABC, em 79 e 80, principalmente. Se conquistou certo espaço e o direito de se exercer uma ação sindical. Em Minas é a barbárie. É pancadaria. A polícia vai e espalha você na pancada, e se você quiser ficar na porta na fábrica, tem que ser embaixo de pancada. Senão não tem jeito. É muito dura a repressão, mais dura do que aqui. Em todos os setores, é muito diferente. A pessoa que está acostumada com isso aqui, vai lá e se assusta, a coisa é feia.

 

Fundação da CUT e do PT
 

Começou a ser discutida a necessidade de construção de uma Central Única dos Trabalhadores desde essa época. Desde 78, os sindicatos já aprovavam a necessidade disso, nas assembléias e nos congressos. Foi aí que se começou a trabalhar a construção de um encontro nacional que acabou acontecendo em 80.

Outra coisa que acabou caminhando pari passu com isso foi a questão do PT. Nessa época era um período de decadência do regime militar e uma das conseqüências dessa decadência, da perda de controle do regime, é que dentro da própria burguesia havia questionamento ao sistema de representação política. Só dois partidos eram permitidos: a ARENA [Aliança Renovadora Nacional] e o MDB [Movimento Democrático Brasileiro]. Particularmente, a grande burguesia que havia se desenvolvido em São Paulo, uma parte da burguesia industrial e bancos não se sentiam bem representados, nem pelo MDB, nem pela ARENA.

E isso acabou desencadeando por cima um debate sobre a necessidade de uma reestruturação do quadro partidário do país, de liberdade partidária. Isso não surgiu como uma reivindicação de baixo. Havia uma reivindicação de baixo, particularmente dos partidos comunistas que eram ilegais naquele momento. Havia um ou outro segmento da classe trabalhadora que colocava a necessidade de liberdade para construírem novos partidos. Mas a dimensão que ganhou essa discussão naquele momento tem a ver com o problema de cima.

No bojo desse debate, o que nós levantamos naquele momento? Que, se todo mundo iria ter o seu partido, nós queríamos ter o nosso. Porque não tinha sentido a gente trabalhar quatro anos, lutar quatro anos contra o patrão para chegar na eleição e votar nele para que ele continuasse esfolando a gente. Essa idéia foi crescendo, ganhou alguns sindicatos, particularmente os sindicatos de Santo André, nós convencemos toda a diretoria do Sindicato de que nós tínhamos que trabalhar para construir um Partido. Também uma parte da diretoria dos sindicatos de São Bernardo. O Lula brigou muito com a gente nesse período, ele era contra. Ele só passou a ser a favor de fundar o PT no Congresso de 79, dos Metalúrgicos daqui de São Paulo. Ele era muito influenciado pelo irmão dele, o Frei Chico, que era do PC. Todos os dois, naquele momento, defendiam a manutenção da unidade democrática dentro do MDB. Eles eram contra essa coisa de construir outro partido, eles eram contra construir Central Sindical, pois achavam que dividia. Eles defendiam que os trabalhadores permanecessem no MDB, na Frente Democrática, que eles chamavam, e nas Confederações. Então havia toda essa polêmica.

Mas essa idéia foi crescendo, esteve presente nas discussões do Congresso do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André, que apresentou uma tese para o Congresso dos Metalúrgicos do Estado de São Paulo, que aconteceu em 79, aqui na cidade de Lins. Era um texto de uma, duas páginas, de conjuntura que tinha duas conclusões fundamentais: uma, que era preciso organizar uma campanha salarial unificada de todo o setor metalúrgico do Estado de São Paulo para 79; nós estávamos em fevereiro, a data-base era no dia primeiro de abril; e a outra falava que era necessário que o Congresso chamasse a construir um partido de trabalhadores porque nós não podíamos ficar assistindo aos patrões se organizarem e ficarmos sem um partido político.

Por mais que nós não esperássemos, o Congresso aprovou as duas propostas, aprovou essa idéia de unificar as campanhas salariais. Daí que surgiu aquela primeira greve geral do setor metalúrgico, aqui em São Paulo, em 79. E aprovou também a idéia do PT, por um conjunto de fatores, porque apresentamos a tese como plano de conjuntura. O Joaquinzão [Joaquim dos Santos Andrade], depois que eu apresentei a tese... Eu fui apresentar porque o povo da diretoria do Sindicato estava a favor, mas eles não queriam se meter na discussão, então eu apresentei... Mas, o Joaquinzão pediu a palavra, eu achei que ele ia defender contra, porque eles tinham apresentado uma moção para o Congresso aprovar a refundação do PTB, Partido Trabalhista Brasileiro - eles eram ligados ao PTB antes do golpe -, mas não! Como ele apresentou a proposta como moção, que é o último ponto do Congresso, ele falou que tinha gostado dessa proposta “dos meninos” de Santo André e que ele retirava a proposta dele e apoiava a nossa.

Praticamente todo mundo no Congresso apoiou. Só a delegação de Santos - que era a delegação ligada ao Partidão [Partido Comunista Brasileiro] e que estava entendendo o que estava acontecendo ali - não apoiou. Porque o resto que apoiou não estava entendendo direito. Era o Cid Ferreira, de Campinas, que era um pelego que Nossa Senhora!

O Congresso era controlado pelo Argeu [Argeu Egydio] que era o presidente da Federação naquela época aqui em São Paulo. Mas aquilo deu um salto, foi o primeiro momento em que o Lula fez um discurso a favor do PT. Todo mundo estava a favor, ele foi lá e fez um discurso falando que era a favor também. Mas foi muito importante porque o peso dele foi fundamental para que o PT se desenvolvesse como se desenvolveu naquele momento. Então as duas coisas foram meio que caminhando juntas. Então, eu militei no ABC até 82, fundamentalmente, construindo esse processo.

 

Greves

A melhor greve que nós fizemos da categoria, foi na Mannesman, em 88, fábrica que eu acompanhava. Ela ocorreu por um erro da direção da empresa. Nós estávamos no meio de uma campanha salarial. Eu fui para a porta da fábrica com um outro diretor do Sindicato; estávamos distribuindo boletim normalmente, na entrada do turno, e a fábrica chamou a polícia para tirar a gente de lá. A polícia foi. Nós dissemos que estávamos apenas distribuindo boletins como sempre fazíamos e que não iríamos sair. A polícia prendeu a gente e levou para a delegacia. Nós voltamos à tarde com carro de som para fazer Assembléia na porta da fábrica e explicar o que estava acontecendo. A gente parava o carro de som na frente dos ônibus e fazia a Assembléia, depois terminava a Assembléia e tirava o carro para o ônibus ir embora. No meio da Assembléia chegou a polícia de novo. Pediu para descermos. Nós não descemos e falamos: “A hora que acabar a Assembléia, a gente conversa.” A hora que acabou a Assembléia, nós descemos e fomos tirar o caminhão. O policial disse: “Não pode tirar o caminhão, ele está preso, tem que esperar o guincho.” Aí nós subimos de novo e falamos: “Olha, gente, vocês vão ter que esperar aí, não pode tirar o caminhão, ele está preso.” Nós ficamos ali conversando, tentando convencer o cara, mas nós não tínhamos percebido que eles tinham chamado o COI, que é uma tropa de elite da Polícia Militar de Minas, e os caras não perceberam que tinham uns 2 mil trabalhadores daquele turno que saía. É uma siderúrgica grande e estava todo mundo em volta. Era aquela confusão, a gente conversando com a polícia, o pessoal do COI chegou, entrou, mas entrou batendo em todo mundo. Eles abriram espaço para chegar até a gente, batendo em todo mundo que estava na frente. Eu acho que nunca apanhei tanto na vida como apanhei naquele dia. Nós apanhamos demais. A hora em que eles entraram batendo em todo mundo, os trabalhadores se afastaram e começaram a jogar pedra, os caras puxaram o revólver... Por sorte, não foi uma tragédia. Fomos todos presos de novo, fomos para a delegacia. À noite soltaram a gente. No outro dia de manhã, o pessoal que apanhou na saída do trabalho entrou e parou a fábrica. Pararam sem a gente ter convocado e a fábrica também não esperava. E a siderúrgica tinha um problema, ela tinha dois alto-fornos que estavam cheios, estavam carregados. Os engenheiros abafaram o forno. É um procedimento padrão que eles usam em uma situação dessas, porque, se esfria o material que está dentro do forno, “tchau e benção.” Tem que, na verdade, jogar aquilo fora e fazer outro forno. E aí a fábrica fica parada seis meses sem produzir nada. Então deu um desespero na direção da empresa, porque eles queriam resolver o problema. Porque o forno abafado segurava aquilo quatro, cinco dias, no máximo, e depois ia começar a esfriar o aço lá dentro e acabou. Foi o melhor acordo que nós fizemos até hoje. Deram tudo que a gente pediu. Tudo! Dois dias de greve resolveram.

Já em 89, foi mais difícil. Nós fizemos ocupação em 89, mas a fábrica já estava esperando, já tinha esvaziado o forno. Nós tínhamos pouca experiência de trabalhar com esse tipo de fábrica, fizemos muita bobagem. A resistência dos trabalhadores foi um negócio muito bonito. Porque a gente ocupou a fábrica, ocupou a região do alto-forno, mas estava abafado. Nesse momento, conseguimos fazer o acordo com a Belgo Mineira, porque a gente ocupou muitas fábricas. Com a Belgo Mineira saiu acordo no segundo dia da greve porque ela entrou com pedido de reintegração de posse na Justiça, que concedeu. O comando da Polícia Militar da área de Contagem, onde fica a fábrica, chamou a direção do Sindicato lá no quartel. Eu estava na Mannesman, saí e fui para a reunião. Chegamos lá, a direção da fábrica também estava. O cara colocou a gente em uma sala e falou: “Olha, resolve esse problema aí. Esse problema é de vocês.” Aí a empresa falou: “Meu amigo, eu tenho uma reintegração de posse.“ O policial respondeu: ”Tá bom, mas resolve aí que esse problema não é meu. Eu vou botar policial lá dentro da fábrica do jeito que está e como é que faz? Eu vou ter que matar trabalhador, vai morrer soldado, como é que vai ser? Então vocês resolvam aí.” E falou que não ia cumprir a reintegração de posse. Aí ficou o dia inteiro reunido e saiu o acordo, a empresa chegou naquilo que a gente estava pedindo. E eu achei que na Mannesman ia sair da mesma forma. Eram os alemães que dirigiam a empresa. Hoje ela é de propriedade francesa, mas naquela época eram os alemães. Eles não aceitaram negociar. Insistiram no cumprimento, conseguiram a reintegração de posse também. Em Belo Horizonte, era outro batalhão, era o batalhão de choque. O cara do batalhão de choque foi lá, tentou falar com a gente, mas nós não quisemos falar com ele. Ele foi ao Sindicato, mas o pessoal do Sindicato também não quis falar com ele: “Olha, nem nós conseguimos falar com quem está dentro da fábrica, vocês resolvam aí.” Aí ele procurou a advogada do Sindicato, procurou a direção da empresa, a empresa exigiu o cumprimento do mandato.

O problema foi o seguinte: estávamos em março de 89; em novembro de 88, os operários da CSN tinham ocupado a siderúrgica, o exército invadiu e mataram três operários, foi uma comoção nacional. O Newton Cardoso, governador de Minas Gerais, ficou com medo de que ocorresse o mesmo aqui. Acho que ele raciocinou: “Eu vou mandar a minha polícia entrar lá na fábrica e vai morrer gente. Depois, eu é que vou pagar o pato?” Com certeza ia morrer gente, o pessoal estava todo armado dentro da fábrica. Não tinha como não acontecer uma desgraça. Aí ele deu ordem para a polícia não cumprir a reintegração de posse. Criou um impasse, porque a Justiça mandava reintegrar, a polícia falava: “Eu não cumpro a ordem.” E ficou assim durante dez dias, até que o comando da polícia fez um contato com o Governo Federal. A ministra do trabalho [Dorothea Werneck] ligou para o Sindicato e falou para a gente sair que ela garantia que a empresa ia dar a mesma coisa que a Belgo Mineira. Aí foram falar comigo na fábrica e eu disse: ”Olha, eu não vou falar isso aqui, porque depois se ela não cumprir? Como é que ficamos? Não podemos confiar numa promessa desse jeito. ‘A ministra mandou falar que vai fazer”. Então o Ministério se comprometeu a mandar um representante para fazer a proposta aos trabalhadores. Eu falei que tudo bem: “Se os caras vierem aqui e o pessoal aprovar.” Foi um representante do Ministério do Trabalho dentro da fábrica e garantiu para o pessoal que cumpriria o mesmo acordo da Belgo se a gente saísse. Saímos da fábrica e ela cumpriu o acordo. A Mannesman nunca assinou nada com a gente, mas sempre cumpriu tudo. Não sei que ameaça o governo fez para eles, mas resolveu assim.

Centrais Sindicais
 

Na década de 80, vivemos um processo de mobilização de forma mais generalizada no país e construímos, nesse processo, um instrumento que ajudou muito a impulsionar essas mobilizações, essas lutas, a dar um sentido comum a essas lutas que aconteciam no país inteiro, que era a CUT. Na década de 90 nós vivemos dois processos combinados que dificultaram muito a continuidade desse processo de mobilização.

O primeiro tem a ver com a coisa mais objetiva mesmo, a mudança da nossa realidade porque a implantação das políticas econômicas adotadas pelo governo Collor geraram uma retração na economia muito grande no começo da década de 90. Isso se combinou com a intensificação da reestruturação das empresas, o que tem a ver com um dos aspectos do neoliberalismo. A busca das empresas por melhoria na produtividade, na qualidade do produto e diminuir custos, levando à automatização em alguns setores, à reorganização dos processos de produção em outros, mas que necessariamente tinham como conclusão uma diminuição grande do número de trabalhadores.

No nosso Sindicato, em Minas Gerais, houve uma redução brutal do número de postos de trabalho, nós perdemos 40% da categoria. Na Mannesman, quando a gente fez a ocupação de 89, trabalhavam quase 11 mil operários; hoje, ela deve ter 4 mil e produz mais do que produzia naquela época. Esse processo foi vivido, de certa forma, em quase todas as empresas da categoria. Então isso significou um processo de demissão continuado por muito tempo, que vai abatendo a moral dos trabalhadores. As pessoas ficam com medo.

Na Mannesman, em 91, vivemos um episódio complicadíssimo. Foi quando as empresas do país inteiro começaram a pressionar os trabalhadores para reduzir o salário a fim de evitar um maior número de demissões. E a empresa apresentou uma proposta de reduzir 15% do salário dos trabalhadores para não demitir 700 empregados. Naquela época, já eram 8 mil empregados. O Sindicato defendeu contra, a empresa propôs um plebiscito, um processo de consulta aos empregados e nós, equivocadamente, concordamos. Qual foi o resultado? Prevaleceu a pressão que a empresa estava fazendo dentro da fábrica. A maioria dos trabalhadores votou a favor da redução de salários. Nós acabamos de apurar o plebiscito lá pela uma hora da manhã, a troca de turno era às 11 da noite. Terminamos a apuração e fomos para o Sindicato, reunimos a diretoria e avaliamos o quadro, afinal era a maior empresa da categoria, e nós tomamos a decisão de desrespeitar o plebiscito. Falamos: “Nós não vamos assinar o acordo.” Porque se assinássemos um acordo numa fábrica daquelas, ficávamos obrigados a reduzir o salário da categoria inteira. Outras empresas iriam propor o mesmo acordo. Então, nós preferimos desrespeitar a votação do pessoal. Fizemos um boletim, ainda de madrugada, fomos para a porta da fábrica, no dia seguinte, e falamos: “Olha moçada, vocês vão nos desculpar aí, mas não vamos respeitar a votação, o Sindicato não vai assinar o acordo, não foi para isso que vocês colocaram a gente no Sindicato. Se vocês querem alguém que faça isso, na próxima eleição vocês coloquem outro pessoal, nós não vamos fazer.” Foi um negócio legal, porque o pessoal da fábrica acabou achando bom o que o Sindicato fez, porque o raciocínio deles foi o seguinte: “Eu aqui estou pressionado, eu tenho que fazer o que a empresa quer, quem tem que defender a gente são vocês que estão lá.” Então eles acabaram achando que o raciocínio do Sindicato estava certo, apesar de desrespeitar a votação deles.

Vivemos esse processo durante anos nesse período, porque as pessoas ficavam com muito medo, por conta da ameaça de demissão. Isso, por si só, é um elemento que dificulta muito o cara a lutar, porque vem aquele raciocínio: “O salário está pouco, mas sem emprego é pior ainda.” A disposição de se mobilizar para melhorar o salário era sempre mediada por isso, esse processo de reestruturação, essas mudanças na economia.

Por outro lado, o instrumento que nós tínhamos construído há alguns anos para tentar enfrentar politicamente não tinha solução para esses problemas no universo de uma empresa. A reestruturação que a Mannesman estava fazendo era a mesma que a Belgo Mineira e outras empresas faziam. Tinha a ver com um ordenamento econômico mais geral, que você só enfrenta se consegue produzir também um processo de mobilização mais geral para tentar mudar as regras em que se organiza a economia do país. Não seria possível, no universo daquela empresa, garantir emprego, melhorar o salário, garantir as condições de trabalho e o resto do mundo cair. Isso não existe! Só que, dentro da nossa avaliação, os instrumentos que nós tínhamos construído antes para fazer essa luta geral estavam também se modificando, sofrendo um processo de mudança muito grande, que é o processo que a CUT viveu. Em 1988, depois do Congresso da CUT em Minas Gerais, começou a se operar um conjunto de mudanças na orientação política da Central, que levou a que ela cada vez mais deixasse de cumprir esse papel. A combinação desses fatores, os problemas objetivos, as demissões, o medo das pessoas e o problema subjetivo, com o papel que a direção do movimento cumpriu, acabou diminuindo muito o processo de mobilização, de luta, em toda a década de 90.

Isso começa a se recuperar no final da década, agora no começo dos anos 2000, mesmo assim de forma muito mediada. Em certo sentido, nós começamos a viver de novo um processo de reorganização dos trabalhadores no país. Estamos no início dele, mas ainda vivemos uma situação muito complicada nesse ponto de vista.

A CUT nasceu em um processo semelhante no começo dos anos 80. Na época, havia a necessidade de juntar todos os trabalhadores, porque os interesses eram comuns, essa função seria das Confederações e Federações. Todas as categorias eram ligadas a Confederações nacionais. Então, as Confederações poderiam ter unido as nossas lutas naquele momento, mas elas se negaram a fazer isso, porque tinham relações políticas e de dependência com o governo. Por isso, nós rompemos com as Confederações e fundamos a CUT. Hoje esse processo está se repetindo. Novamente, os interesses de quem controla as organizações nacionais estão mais vinculados ao governo do que aos interesses dos trabalhadores. Então isso gera uma crise, um distanciamento que leva à ruptura de sindicatos, leva à ruptura de federações como está acontecendo agora. Há todo um processo de rearranjo do movimento que ainda vai durar anos. A situação hoje é mais difícil do que era naquela época. Antes tinha mais luta, hoje tem menos luta, então é mais difícil organizar o trabalhador, mas, estamos vivendo esse processo hoje.

A Conlutas [Coordenação Nacional das Lutas] surge como uma resposta quase que instintiva de um conjunto de sindicatos, na sua grande maioria da CUT, à proposta de Reforma Sindical apresentada pelo governo no começo de 2004. No interior da CUT havia avaliações bastante diversificadas sobre a natureza do governo Lula. As expectativas em relação ao governo eram também diversas. O problema é que, na medida em que o governo começou a implementar suas políticas, houve um alinhamento da CUT, ou do setor majoritário na Central, com as políticas do governo.

Isso explodiu numa crise já em 2003, quando o governo implementou a Reforma da Previdência, que naquele momento atingiu mais o setor público. Houve uma greve nacional dos servidores públicos contra a Reforma. A enorme maioria das organizações que fizeram essa greve era filiada à CUT, mas a CUT ficou do lado do governo. Ela dizia que era a favor dos trabalhadores, mas não apoiou a greve e defendia que deveria haver duas mudanças: botar um teto para a aposentadoria, acabar com a aposentadoria com salário integral que os servidores tinham, e regulamentar os fundos de aposentadoria complementar, que tem a ver com a privatização da Previdência. Essa era a essência da proposta de Reforma da Previdência, do governo. Foi o primeiro cisma que surgiu, digamos assim, entre a CUT e os sindicatos que ela representava. Porque entre a defesa dos interesses dos trabalhadores e daquilo que era a política do governo, naquele momento, a CUT preferiu ficar com a defesa da política do governo. Abriu-se uma crise, contida naquele momento porque atingiu fundamentalmente o setor público e o grosso dos sindicatos da CUT estão no setor privado.

Essa coisa explodiu em 2004, quando o governo apresentou, junto com a CUT e a Força Sindical, uma proposta de Reforma Sindical que foi elaborada dentro do Fórum Nacional do Trabalho. O DIEESE, em certo sentido participou disso também. Se eu não me engano ele era o relator do Fórum. Essa proposta de Reforma, na nossa avaliação, era um desastre total. Pelo menos em dois sentidos: ela restabelecia o controle do Estado sobre os sindicatos, a ponto de que nós recuávamos para antes da Constituição de 88. Quando nós fizemos nossa greve geral em 79, em Santo André e em São Bernardo, o governo interveio nos sindicatos, afastou a diretoria, nomeou uma junta governativa; depois em 80 também. Na Constituição de 88, o governo perdeu essa prerrogativa, ou seja, o Ministério do Trabalho perdeu o direito de intervir na entidade sindical. Ela passou a ser mais livre do que era. Com a Reforma Sindical se devolvia esse poder para o Ministério do Trabalho, que teria direito não só de intervir no sindicato, mas de caçar a representação sindical. Ele deixa de representar os trabalhadores se a entidade deixar de cumprir determinadas regras estabelecidas pelo Ministério. Então, do ponto de vista da liberdade de organização sindical, a Reforma era um desastre. Além disso, ela transfere o centro de poder para a cúpula da estrutura sindical.

Quando nós fundamos a CUT, tínhamos o objetivo de deslocar para a base o centro de poder dos sindicatos. O centro de poder da estrutura sindical hoje são os sindicatos porque eles têm o poder de arrecadação. É o Governo e o Sindicato que podem arrecadar nesse país aqui. E tem o poder de contratação. Ele pode assinar o acordo estabelecendo leis, regras que a empresa e os trabalhadores são obrigados a cumprir. Federação e Confederação não têm esse poder, a não ser que o Sindicato autorize expressamente. Na época da fundação da CUT dizíamos que esse poder que está na mão da direção do Sindicato deveria ser deslocado para a base. Nosso objetivo era organizar o trabalhador em cada empresa, fazer com que eles controlassem esse processo porque era muito poder nas mãos dos sindicatos. A gente nunca conseguiu fazer isso na CUT.

O que a Reforma Sindical fazia? Ela estendia esse poder de negociação, de contratação e arrecadação para a Central Sindical, então jogava este poder para mais longe do controle dos trabalhadores. Quer dizer, se já havia problemas com esse excesso de poder na direção dos sindicatos, se a Central Sindical passa a ter esse poder, os trabalhadores ficam mais distantes ainda. Outro problema era que, junto com isso, a Reforma disponibilizava para a negociação os direitos trabalhistas que nós temos hoje. Então hoje prevalece um princípio na lei que é que o legislado vale mais que o negociado. Ou seja, nenhum sindicato pode negociar um acordo reduzindo o direito trabalhista do empregado. Se o sindicato assina um acordo acabando com o seu décimo-terceiro, você vai à Justiça e segue tendo o seu décimo-terceiro porque prevalece aquilo que está na lei e não aquilo que foi negociado no que diz respeito aos direitos. Esse critério é invertido com aquela proposta de Reforma Sindica,l de forma que o que foi negociado prevaleceria sobre aquilo que está na lei. Juntando as coisas, a Central Sindical poderia negociar em nome dos trabalhadores, sem fazer assembléias e assinar uma coisa que passaria a ser uma regra para o trabalhador. Ao mesmo tempo, o direito trabalhista que eu tenho está disponibilizado para negociação. É só fazer conta de um mais um para saber o que iria acontecer.

Mas é uma Central bastante diferente dessas que existem hoje. Queremos resgatar aquilo que era um princípio da nossa luta na década de 80: a independência de classes, a democracia, a luta como forma e caminho para mudar o país, e não da parceria com os patrões, que acabou sendo adotado de novo pelas Centrais. Mas a gente quer ver se avança em relação às limitações que as Centrais têm hoje. A Conlutas não organiza apenas sindicatos. Organiza movimentos populares, movimentos sociais, estudantes, organização de desempregados e todo mundo que queira lutar para mudar o país. Porque partimos de um pressuposto que é a nossa realidade: mais da metade da classe trabalhadora, hoje, está fora dos sindicatos, porque ela não está no mercado de trabalho formal - ou ela está desempregada, ou ela trabalha por conta própria, ou ainda é camelô. Mas todos fazem parte da classe trabalhadora. Nós queremos incentivar a luta de classes. Essa organização que a gente está construindo, pretende agrupar todo mundo.

O nosso Congresso tinha aproximadamente 215 sindicatos, 110 federações nacionais, cerca de 115 oposições sindicais e 87 organizações de movimentos sociais: movimento de luta por moradia, movimento hip hop, movimento de luta contra a discriminação racial, contra a opressão da mulher. É um negócio muito legal. Temos um grande desafio no que diz respeito à estrutura da direção da Conlutas

A partir do começo do ano que vem [2007] vamos realizar seminários para estudar esse problema da estrutura sindical, os problemas que os sindicatos no Brasil têm. Estou preparando um texto e para isso estou lendo um livro da companheira que foi diretora técnica do DIEESE, a Heloísa Helena [Heloísa Helena de Souza Martins]. O texto dela é muito bom. O texto está sendo muito útil para mim. Porque nós queremos discutir o problema da relação do Sindicato com o Estado, que é uma característica do capitalismo, uma coisa quase que inevitável, mas é muito importante estudar a particularidade desse processo de construção na estrutura sindical no Brasil, porque não há consciência por parte dos dirigentes sindicais sobre isso. Particularmente dessa geração mais nova que entrou agora, que não viveu aquele período da ditadura, que começou a militar agora nos últimos dez, quinze anos.

As pessoas que entram nessa estrutura [no sindicato] sem compreender o que significa, de fato, se corrompem muito facilmente. Porque o Sindicato foi construído no Brasil neste modelo: controlar a luta do trabalhador, não para impulsionar a sua luta. Então é um espaço que nós temos que ocupar. O Sindicato é referência para a luta dos trabalhadores, mas a natureza de sua organização é outra. O dirigente entra, se adapta e vira mais um burocrata. É triste, mas é preciso reconhecer.

Então a gente quer ver se na Conlutas construímos uma estrutura distinta. Nós não temos direção eleita na Conlutas. É uma entidade nacional que funciona com coordenações. Tem a Coordenação Nacional, Estadual, Regional e Municipal na medida em que vai se organizando, mas não tem ninguém com mandato fixo. A cada reunião da Coordenação, a entidade ou o movimento que participa da Conlutas manda o seu representante para lá com as suas posições. A Coordenação Nacional, por exemplo, se reúne a cada 60 dias. Trinta dias antes, a Secretaria manda a convocação da reunião com uma pauta prévia, as entidades discutem e mandam a sua representação. E aí, coletivamente, você delibera o que a organização vai fazer. Na próxima reunião, se a entidade quiser trocar o seu representante, pode trocar. É uma coisa que reúne a representação dos movimentos e sindicatos que participam, mas não tem ninguém com o poder de, permanentemente, deliberar pela entidade. Não é uma garantia, em última instância não há garantia para essas coisas de que a entidade não se degenere, mas são mecanismos que ajudam a manter um controle mais permanente pela base. São desafios novos, são coisas novas que nós estamos tentando implantar para ver se ajuda a enfrentar essa coisa. As pessoas me perguntam muito isso: “Vocês ajudaram a fundar a CUT, demorou 20 anos, deu no que deu. Agora vocês estão construindo a Conlutas. Quanto tempo vai demorar para ela ficar igual a CUT?” Este é o sentimento natural das pessoas, a desconfiança natural das pessoas, particularmente depois da decepção com o PT e a CUT. Esse é um grande problema para a Conlutas. Mas nós temos a obrigação de aprender um pouco com o passado e tentar ver se aquilo que a gente faz daqui para adiante pode ser melhor, mais seguro.

Fatos Marcantes
 

O começo da minha militância teve uma coisa muito legal que me marcou. Eu fui preso em 77 e nós “comemos o pão que o diabo amassou” na cadeia. Eu tinha um problema grande com a minha mãe, a minha mãe entrou num desespero. Como eu jogava muito, eu saía muito de casa para jogar, a minha mãe queria morrer, achava que eu ia para reunião. Foi um ano insuportável. Eu até pensei em sair de casa porque eu não agüentava mais brigar com ela, porque mãe é mãe, não é? “Ah, meu filho, toma juízo porque vão te matar.” Aí, em 78, eu fui preso de novo. Em agosto, eu já estava na Cofap. Nós fizemos um encontro nacional que foi quando a gente construiu a Convergência Socialista. Fizemos um encontro aqui em São Paulo e nós erramos na avaliação de conjuntura e fizemos um encontro público, saiu até uma notinha no Estadão. No dia seguinte a polícia prendeu toda a direção [da nossa organização], prenderam quase 30 pessoas. Eu fui preso porque no dia em que ocorreram as prisões, eu tinha ido à casa de um militante da direção e a polícia estava prendendo ele.

Dom Cláudio Hummes, que agora é arcebispo de São Paulo, era bispo lá de Santo André, e o pessoal do Sindicato dos Metalúrgicos [convocou uma Assembléia na igreja para ver o que fazer sobre as prisões. Tinha sido preso um monte de gente, quase umas 30 pessoas. Lá na discussão da igreja, resolveram fazer uma greve de fome. Minha mãe foi quem propôs na Assembléia fazer a greve de fome para ver se tirava o pessoal. Ela veio aqui para a PUC, no Tuquinha [salão Beta da PUC], mais umas senhoras da igreja e alguns estudantes e começaram a fazer greve de fome.

E foi muito legal porque eu saí da cadeia com 13 dias, 14 dias. Nós estávamos em greve de fome dentro da cadeia e eles fora. Eu saí e discutimos entre nós a idéia de que eu voltasse para o ABC para tentar ver se retomava as coisas lá e minha mãe continuou em greve de fome. Eles ficaram um mês em greve de fome, porque ainda tinha gente presa. Foi a partir daí que ela começou a participar das reuniões da Convergência Socialista, deixou de brigar comigo e passou a participar das atividades políticas. Ela ajudou em todos aqueles processos, ajudou a fundar o PT, militou até morrer. Ela morreu há dois anos, já velhinha, mas sempre que podia participava das atividades. Isso foi muito gratificante para mim. Eu acho que ela nunca entendeu muito bem o que a gente queria fazer, mas ela se identificou com a coisa e foi muito bom.

Outro fato foi quando a gente teve que romper com o PT e fundar um outro partido. Porque nós fundamos o PT, mas nós nunca tivemos muita expectativa sobre o que o PT poderia ser, além de um partido de classe que pudesse organizar os trabalhadores de uma forma mais geral. Mas não tem como construir um projeto daqueles, com o esforço e a dificuldade que era naquela época, sem se identificar com ele.

Em 92, a nossa corrente foi expulsa do PT. Isso se deu por causa de uma campanha pela derrubada do presidente Collor de Melo, o chamado, “Fora Collor”. Quando começaram a surgir as denúncias de corrupção no governo Collor, nós começamos, através de alguns sindicatos, a fazer a campanha pelo impeachment do Collor, o que ficou conhecido como o “Fora Collor”, e a avaliação da direção do PT, naquele momento, era que o Collor iria se desgastar até 94 e neste ano o PT ganharia as eleições. Nós achávamos que tinha que fazer um processo de mobilização para isso. Houve um atrito grande, numa reunião com o José Dirceu, que na época era o Secretário Geral do PT. Ele disse: “Olha, ou vocês param de publicar o jornalzinho de vocês...” - nós tínhamos um jornalzinho nosso, naquela época - “e param de defender publicamente qualquer posição diferente do partido, ou botamos vocês para fora.” Nós fizemos uma avaliação e achamos que não valia a pena aceitar as exigências da direção do partido e falamos para eles que podiam fazer o que quisessem, que nós íamos continuar fazendo o que a gente estava fazendo. Aí o encontro do PT expulsou a gente. Lançamos um chamado para construir um outro partido [PSTU – Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado]. Sabíamos que a condição era muito difícil, o espectro político, digamos assim, a esquerda do país estava completamente ocupada pelo PT, o espaço fora do PT era uma coisa muito pequena e que íamos começar a construir um outro partido numa condição que era muito difícil. Podia transformar a gente numa seita, como tem muita seita por aí hoje. Mas a gente resolveu fundar um novo partido.

No final da década de 90, chegamos a lançar uma candidatura à presidência contra o Lula. Nós ajudamos com a nossa atividade política a construir a figura dele desde o final da década de 70, a fortalecer a idéia de que Lula era uma liderança operária que poderia ajudar a mudar o país. Mas nós tivemos que mudar porque a gente chegou à conclusão de que o governo dele, pelos acordos e pelos compromissos que havia estabelecido, não ia mais mudar as coisas, que já se tratava de uma ilusão. Então foi um processo que também marcou muito.

A avaliação que temos hoje é de que, no geral, fizemos as coisas certas. É claro que cometemos muitos erros, mas em geral as coisas mais importantes estavam certas e nós achamos que o período mais difícil passou. Hoje, evidentemente é mais fácil olhar para trás e ver o que foi certo e o que foi errado, mas se tem uma coisa que nos alivia bastante é poder tirar as conclusões em relação ao que foi o primeiro mandato do governo Lula e ver que confirmamos muita coisa do que falamos sobre o governo dele. Acreditamos que ainda está muito distante, no Brasil, a construção de uma organização política capaz de representar efetivamente os problemas dos trabalhadores no sentido de ter condições de construir um processo de mobilização que possa mudar a estrutura econômica do país. Somos muito pequenos, muito fracos ainda perante o tamanho do desafio que temos. Mas estamos construindo um ponto de apoio importante para poder construir essa direção, um acúmulo de quadros grande com uma inserção bastante significativa dos movimentos sociais que se construiu numa situação muito adversa, muito difícil. Esses dois processos foram marcantes para mim. Eu vivo muito em função disso, da militância. Sobra muito pouca coisa para o que não seja isso.

 

Manipulação de Índices
 

Em 77, a gente começou a fazer uma campanha salarial no ABC ainda de forma dispersa, que tinha a ver com a recuperação das perdas que nós tínhamos tido no começo da década de 70. O Delfim Neto era o Ministro da Fazenda naquela época e ele falsificou os índices de inflação do país e, dessa forma, foi arrochando o salário, porque havia uma lei que reajustava o salário de acordo com a variação da inflação. E o DIEESE dizia que a nossa perda era 34,1%.

A gente não sabia direito o que era DIEESE, mas sabíamos que o “DIEESE dizia que tínhamos direito a 34,1% de aumento”. Essa era a bandeira fundamental em torno da qual a gente organizou aquelas mobilizações todas que houve lá em 1977, principalmente 78 e 79, que era a reposição das perdas salariais de acordo com os cálculos que o DIEESE fazia. Ajudou a mobilizar o pessoal por que era um dado concreto, era um número que não se podia negar. Tinha sido tirado da gente.

Então o DIEESE era uma coisa que todo mundo sabia que tinha, o tal do DIEESE, que dizia que a gente tinha 34% de reajuste que havia sido roubado da gente. Mas o que era exatamente, na medida em que você vai participando mais, você vai sabendo, mas foi o primeiro contato que eu tive com o DIEESE. Depois, nas negociações, a partir da campanha salarial de 79, eu fui eleito para comissão de salários do Sindicato de Santo André, então participava das negociações e o DIEESE acompanhava a gente lá. Era o Barelli [Walter Barelli], naquela época, que fazia negociação com a gente aqui na FIESP [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo]. Foi a partir daí que eu tive um contato mais direto com o DIEESE, antes era uma coisa mais de ouvir falar.

Importância do Dieese
 

O DIEESE cumpre um papel essencial para o movimento sindical brasileiro e acho que o sindicalismo brasileiro entende muito pouco isso. Grosso modo, todos nós - e eu não estou falando dos outros setores apenas, mas da corrente na qual milito também - deveríamos buscar dar consistência para aquilo o que a gente faz. O papel fundamental do Sindicato é intervir na realidade do país, tentando defender os direitos das pessoas. Buscar melhorar as condições de trabalho, condição salarial, mas a gente faz isso de uma forma muito grosseira nos sindicatos.

Eu me lembro que em 88, o Sindicato dos Metalúrgicos de Araxá se vinculou à Federação [Democrática] dos Metalúrgicos de Minas Gerais. O presidente do Sindicato chamava-se Marcão, um sujeito muito simpático. Antes eles tinham uma Associação, que transformaram em Sindicato e se filiaram à nossa Federação. Na primeira negociação com a CBMN [Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração], empresa que explora uma mina de níquel, de nióbio na região, houve uma crise. Ele pegou a pauta de reivindicações que a Federação tinha feito no Congresso e apresentou para a empresa. A empresa, na primeira negociação perguntou: “por que vocês estão reivindicando esse índice?” Ele pensou um pouco e disse: “porque eu não sei não, mas nóis quer”. Ele não tinha experiência nenhuma, não tinha nem como argumentar sobre o índice. Eu lembro que a empresa ligou para Belo Horizonte, falou com o pessoal da Federação, alugou um avião para pegar a advogada da Federação para levar lá e ver se conseguia fazer a negociação. Porque era impossível negociar com ele, ele não entendia o que estava reivindicando.

E como ele tinha insegurança em relação às coisas, não aceitava mudar nada, a empresa tinha que atender à pauta de reivindicações que ele entregou. Isso evidentemente é um exemplo extremo. Mas também aconteceu algo com a gente. Quando ocupamos a Mannesman, em 89, não demos conta que o forno já estava abafado, mas não sabíamos o que fazer. O pessoal que trabalha no alto-forno queria ir embora para casa; quem estava lá era gente que não entendia de alto-forno. Então nós resolvemos fechar a água, porque tinha uma espécie de um chuveiro que jogava água de forma permanente em torno do forno, para pressionar a empresa. Mas isso foi melhor para ela, por que quando a gente fechou a água o calor dentro do forno permaneceu por mais tempo, então a gente estava fazendo uma coisa que ajudava a empresa ao invés de pressionar.

É necessário estimular as direções sindicais a estudarem para compreender melhor o que está acontecendo no mundo em que as pessoas vivem, particularmente no processo de produção das empresas cujos trabalhadores ela representa, senão acaba promovendo um tipo de ação sindical que tem muito pouca consistência. A pessoa reivindica um determinado índice e às vezes não consegue nem explicar o porquê. Ou no caso da Mannesman, que não sabíamos lidar com o alto-forno. Precisamos ter informações sobre o processo de produção, a situação da produção da empresa, as condições econômicas da empresa, qual é a relação que ela tem com as suas terceirizadas, qual a importância que isso tem para o processo de produção dela. Isso pode potencializar muito ou enfraquecer muito a ação sindical que se desenvolve.

Um bom exemplo é a única vez que nós conseguimos parar a Fiat, em Minas Gerais. A Fiat é do Sindicato (dos Metalúrgicos) de Betim [MG], dirigido pelos companheiros da CSC [Corrente Sindical Classista], e é uma empresa que tem uma política muito dura em relação aos sindicatos. Para que se tenha uma idéia, ela deve ter 13 mil empregados hoje, dos quais apenas 130 são filiados ao Sindicato. É um processo muito duro de repressão. Um Sindicato da cidade de Lavras – interior do Estado de MG - filiado à Federação, conseguiu parar 120 trabalhadores de uma empresa fornecedora de autopeças que fornecia para Fiat no processo de just in time. Como essa peça era fundamental para a produção do carro, a Fiat parou por dois dias.

Então essas coisas têm a ver com o conhecimento da rede de fornecedores, da produção da empresa e é um problema fundamental para a ação sindical nos dias de hoje. Assim, a produção do DIEESE, os bancos de dados, de informações, as pesquisas que o DIEESE faz, as informações que ele consegue reunir, são muito úteis e muito necessárias para qualificar melhor, para potencializar melhor a luta sindical dos nossos sindicatos e dos movimentos sociais no país. Então, isso eu acho uma coisa muito importante, não há alternativas a isso hoje.

Nós acabamos de fundar a Conlutas agora e decidimos que vamos nos filiar ao DIEESE, já fizemos inclusive um pedido formal de filiação, só falta mandar a ata de fundação. Há muitos sindicatos que não se filiam ao DIEESE por falta de compreensão política, outros por falta de dinheiro, há uma crise financeira grande nos sindicatos também, mas, em última instância, eu acho que o problema fundamental é a falta de compreensão política mesmo.

Há um outro aspecto da atividade do DIEESE que é o trabalho de articulação política que ele faz. Eu, particularmente, tenho reparos com relação a isso. Acho que o DIEESE deveria ter se distanciado mais desse processo da Reforma Sindical, acredito que ele se comprometeu demais com isso. Como foi a pedido das Centrais Sindicais, em última instância, ele teria que fazer o que elas pediram. Mas aí há uma mistura entre o que é o papel do Departamento, de levantamento de informações, de orientação em termos de buscar qualificar a ação sindical, e o que são iniciativas que tenham um caráter mais político. E aí não existe política neutra, esse é o problema. Então há evidentemente uma influência política forte das Centrais Sindicais maiores, dos sindicatos maiores, que fazem parte da diretoria do DIEESE e essas direções sindicais têm uma posição política. Particularmente, acho que não é a melhor posição política hoje. É a diferença que nós temos com a CUT, com a Força Sindical, e isso evidentemente interfere na opinião que nós temos sobre as avaliações políticas que o DIEESE faz, as conclusões políticas que eles tiram dos dados que estudam. Agora os estudos, os dados são muito importantes. Nós temos outras formas de interpretar os dados, outras conclusões acerca do estudo desses dados. Mas isso não diminui a importância que tem o DIEESE.

Estamos fazendo um esforço na Conlutas para qualificar a atividade dos sindicatos e estamos construindo todo um processo, um projeto para formação política sindical. Mas em relação ao problema da análise econômica e social da categoria e das empresas, nós orientamos os sindicatos a buscarem o DIEESE. Nós não vamos nos dispor a construir uma outra estrutura para fazer essas coisas porque nós não teríamos condições para isso. Não vamos “reinventar roda”. Essa é a orientação que damos aos sindicatos na Conlutas.

Recentemente, tive contato com um estudo muito bom do DIEESE sobre a dívida externa, as implicações da dívida externa na situação social do país, um levantamento das conseqüências do processo de endividamento, principalmente sobre como é feito o pagamento da dívida, no que diz respeito a questões como geração de emprego, moradia, salário mínimo, um estudo muito legal. Parte fundamental da atividade de todo o Sindicato deveria ser discutir o orçamento do país. Agora o governo acabou de mandar uma proposta de orçamento para o Congresso Nacional, para o orçamento 2007. A alocação das verbas que constam naquela proposta de orçamento atinge a vida de todo mundo. Então, estudar isso, compreender e discutir o que poderia ser feito de diferente com esse orçamento é muito importante para quem está brigando pelo emprego, para quem discute o problema da moradia. E toda a classe trabalhadora tem problema com moradia. A questão da reforma agrária, a questão do próprio salário, da valorização do salário mínimo e, a partir daí, do resto dos salários, então essas coisas são importantes, acho que esse estudo do DIEESE dá uma boa base. Nós divulgamos para os sindicatos, pedimos ao pessoal para estudar, para acompanhar essa discussão, nós estamos divulgando agora a proposta de orçamento, que o governo apresentou no Congresso para 2007. Desse orçamento, 165 bilhões de reais estão destinados para pagar juros da dívida. É muito mais do que tudo o que é aplicado em saúde, educação, moradia, agricultura e reforma agrária durante o ano todo. Isso é preciso discutir, se você não discutir, não tem como ter solução para essas coisas. Outro tipo de trabalho muito importante é o estudo da situação econômica das empresas, a análise dos juros empresariais, da cadeia de produção e os vários grupos econômicos que são estudados. Gosto muito do anuário [Anuário dos Trabalhadores] que mostra de forma condensada, de forma concentrada aqueles dados sobre a situação social do país. São muitas informações que podem ser usadas no dia-a-dia para você educar as pessoas, criar opinião acerca da necessidade de mudança da situação econômica do país. Então tem muito material que o DIEESE produz que é importante para gente.

E na sociedade em que a gente vive há uma luta permanente entre interesses antagônicos. As formas como isso se apresenta são diferenciadas, depende da circunstância política, depende do momento. Mas é uma luta permanente entre os interesses da classe trabalhadora e do setor que controla a economia, do capitalista, do capitalismo de forma geral.

O DIEESE pode ser um instrumento muito importante para favorecer a luta em defesa dos interesses do ponto de vista de um segmento da sociedade, que é a classe trabalhadora. Portanto ele tem um papel muito importante. Eu não acho que a luta em defesa das idéias, dos interesses dos trabalhadores, se resuma a um problema de organizar e mobilizar as pessoas. Isso é a parte que te permite reunir forças. Mas há toda uma outra dimensão dessa atuação que é tão fundamental quanto esta, ainda mais na forma como se organiza a sociedade hoje, que é disputar a consciência, formar opinião. Por exemplo, há uma discussão se no próximo governo vem uma outra reforma da Previdência ou ainda, outra reforma trabalhista. A Conlutas vai fazer um seminário de 23 a 25 de outubro [de 2006] para estudar a fundo as propostas que estão sendo formuladas pelo Ministério do Planejamento. Vamos escrever uma cartilha e iniciar um processo de debate nos sindicatos e em todos os segmentos da sociedade que a gente puder. Porque se perdermos a discussão na sociedade sobre a justiça das nossas opiniões, se passar para a sociedade a idéia de que aquilo que o governo está falando, ou seja, que a Previdência está quebrada, que não tem jeito, acabou para nós. Podemos até fazer uma mobilização grande, mas a gente não consegue, com essa mobilização, influenciar o Congresso e impedir a aprovação disso. A base de argumentação para a defesa das idéias da classe trabalhadora não é uma coisa secundária. Não basta dizer como dizia meu amigo Marcão: “Eu quero porque eu quero.” Desse ponto de vista, a produção feita pelo DIEESE, no sentido de buscar dar mais clareza, mais conhecimento sobre a realidade em que a gente atua, buscar explicar as conseqüências para a vida da gente dos mecanismos de produção que existem no país hoje, dá argumento consistente para que possamos defender as nossas idéias. Desse ponto de vista, eu acho que o DIEESE é um dos patrimônios que nós conseguimos construir nos últimos 50 anos, ele é muito importante.

O esforço do DIEESE em separar uma coisa da outra tem que ser permanente. Não significa dizer que os técnicos do DIEESE não tenham que ter opinião, todo mundo tem opinião, aliás, eu acho que todo mundo tem que ter, mas tem que saber separar uma coisa da outra. A direção do DIEESE tem uma posição política, são dirigentes sindicais, todos têm posição política, mas se não separar uma coisa da outra, ele perde eficácia. O problema da Reforma Sindical gerou um estremecimento. Mas eu acho que isso é uma coisa que foi superada por conta dessa importância, dessa contribuição que o DIEESE dá nessa outra dimensão. Da construção de consistência, de base para que a gente possa defender nossas idéias de forma concreta.

 

Avaliação/Dieese

Há duas questões que gostaria de apontar acerca das diferenças que temos com o DIEESE. Primeiro, o DIEESE tira conclusões a partir da análise dos dados, que são muito influenciadas por aquilo que o PT vem defendendo nos últimos anos como programa econômico do partido. O chamado “Programa por desenvolvimento, distribuição de renda e geração de emprego.” Este é o nome genérico que se dá para algo que essencialmente não muda nada da situação atual. Isso leva a que se subvalorize as conclusões em relação ao problema da dívida.

O programa econômico que o PT construiu não pode questionar nenhum dos fundamentos do modelo econômico implantado no país, o Lula fez essa adaptação para poder ganhar as eleições, para poder ter apoio de um setor fundamental do empresariado nacional. Como não se pode questionar a dívida, buscam outras formas de tratar o problema causado por ela. O programa econômico é reduzido à questão da taxa de juros, que tem que abaixar, a investir na economia solidária, na pequena e micro empresa, porque é a que mais gera emprego, mas não se discute um problema fundamental que é de onde vai sair recurso para resolver os problemas do país. De onde vai sair o recurso para investir na pequena empresa? Para investir na pequena propriedade rural, na reforma agrária ou no investimento ao pequeno agricultor rural? De onde é que vai sair o recurso para valorizar o salário mínimo de forma decente? O DIEESE tem o cálculo do salário mínimo de acordo com os preceitos constitucionais que deve estar em 1540, 1580 reais. De onde viria o recurso para isso? É possível ter um salário mínimo com esse patamar no nosso país? Nós achamos que é possível desde que pare a sangria de recursos que existe no país. Então isso tudo é secundarizado nas conclusões do DIEESE. Ele aponta a necessidade de investir na pequena empresa, baratear o crédito e diminuir os juros. Nada disso muda a situação do país.

A economia do Brasil muda de forma significativa em função dos interesses dos trabalhadores, se houver uma ruptura com o cerne das políticas do Fundo Monetário Internacional [FMI] que são aplicadas até hoje no Brasil e que têm a ver fundamentalmente com a dívida. Toda a economia brasileira é organizada para garantir um superávit, um volume de recursos cada vez maior para seguir alimentando o pagamento da dívida. E este pagamento não diminui a dívida, ao contrário, ela vai aumentando. A cada ano que passa se paga mais de juros e de amortização e, a cada ano que passa você está devendo mais. Se você pega os quatro anos de governo Lula, foram 490 bilhões de reais, de acordo com o Banco Central para pagar juros da dívida. Isso é mais do que o FHC [Fernando Henrique Cardoso] gastou nos oito anos de governo dele. Não há nenhuma hipótese de solução para qualquer problema que aflige a vida do trabalhador, no que diz respeito à economia, sem que se resolva a questão da dívida. Isso não está presente nas conclusões que o DIEESE tira da análise que ele mesmo faz. Ele fez o estudo sobre a questão do endividamento. Por que isso não está presente? Porque acaba recebendo uma influência política da direção das Centrais Sindicais que têm uma outra visão.

A CUT defendia o não pagamento da dívida externa e interna até o começo da década de 90. Quando ela começou a se construir de forma mais sólida dentro do PT a perspectiva de fazer um acordo com setores fundamentais da burguesia para chegar ao governo, ela começou a deixar de defender isso, até que, no Congresso passado, tirou esta questão do programa. Por que a CUT tirou isso do seu programa? Porque o problema da dívida hoje é menos grave do que em 83 quando ela foi fundada? O problema da dívida hoje é muito mais grave do que foi naquela época. Ela tirou por um problema de conveniência política. Pela relação com o partido e com o governo. Porque o governo que ela apóia quer continuar pagando dívida, não parar de pagar a dívida. Essas coisas acabam limitando, às vezes, as conclusões políticas que se tira dos dados da análise da realidade que a gente vive. O outro problema é a Reforma Sindical. Eu acho que o DIEESE conhece muito a estrutura sindical brasileira, conhece por dentro, e era perfeitamente possível chegar a uma conclusão de que as mudanças que se propunham naquela reforma, particularmente no que se diz respeito à estrutura sindical, estou até tirando aqui o problema trabalhista, significariam um retrocesso. Se levou em conta a lógica da cúpula das Centrais Sindicais. A cúpula das Centrais Sindicais, todas elas, ganhariam muito com esse reforma. Ganhariam poder, finanças, o direito de tributar, de arrecadar recursos, muito mais recursos do que elas recebem hoje e um poder enorme, na medida em que ela passa a assinar contrato. Então você imagina o poder que uma Central Sindical tem se ela pode sentar com uma Confederação de trabalhadores, de empresários, com a CNI, por exemplo, e negociar o décimo -terceiro da turma. É muito poder. Agora isso é contra tudo o que o chamado Novo Sindicalismo brigou nos últimos 20 anos. Quando a gente fundou a CUT, era contra isso.

O DIEESE não tem a obrigação de ser a favor das posições políticas que nós tínhamos quando fundamos a CUT, nem dessas, porque o DIEESE é justamente um Departamento de todas as Centrais e, portanto, não deveria se meter nisso. Ao defender a proposta de Reforma Sindical, ele se compromete com essas conclusões políticas. Acho que isso não tem a ver com a sua função. Acho que nesse sentido ele peca. A defesa que o DIEESE fez da Reforma Sindical, ela não tinha razão de ser. Por que razão o DIEESE defendeu a Reforma Sindical? Essas mudanças trariam uma melhora para estrutura sindical? Não tem ninguém que me convença disso. E não é possível convencer ninguém. A própria CUT está numa crise desgraçada por isso. Não havia base que permitisse uma conclusão de que se fazia o melhor para o trabalhador. É o melhor para a cúpula sindical, para o trabalhador, não. São coisas que têm a ver com essas relações políticas, com a influência política que acaba contaminando as conclusões. Obviamente, essa é a opinião de um setor do movimento sindical, é a minha opinião, não é a opinião da CUT, nem a opinião da Força Sindical, pelo contrário, acham que a Reforma era o melhor que tinha. Nessas coisas, se estabelecem as diferenças. Por exemplo, estamos discutindo na Conlutas uma estrutura de formação. O DIEESE também faz formação, mas nós achamos que é mais difícil trabalhar a formação em política sindical com o DIEESE. Nós vamos construir a nossa própria estrutura de formação. Agora, no que diz respeito à outra parte, não. Eu acho que é um trabalho muito importante que é feito e é importante preservar a autonomia política do DIEESE em relação ao governo, ao Estado, isso é fundamental. Porque se ele perde a autonomia, perde a capacidade de ser crítico em relação àquilo que, de fato, tem a ver com o seu papel. O seu papel não é apoiar esse ou aquele projeto, e sim defender o interesse de um segmento da sociedade que é a classe trabalhadora. Se você perde autonomia, você perde essa capacidade de fazer isso.

 

Futuro do Dieese

Sobre as perspectivas para o trabalho do DIEESE eu acho que a tarefa de construir conhecimento, levantar dados, sistematizar informações acerca do processo em que se encontra a economia na sociedade capitalista segue sendo uma necessidade fundamental. Então eu acho que em termos de tarefas, de razão de ser, o DIEESE tem um desafio muito grande pela frente ainda. O capitalismo vai organizando o processo de produção a cada momento, da forma que lhe permita um retorno maior. Nós vivemos uma crise continuada do capitalismo. Essa crise faz com que ele busque organizar a sua forma de dominação e de espoliação para buscar manter a taxa de lucro em patamares aceitáveis para o capital e isso faz com que vivamos um processo continuado de aprofundamento da exploração dos trabalhadores. Então o que a gente vive é uma agudização cada vez maior da desigualdade na sociedade, da espoliação que se faz contra as pessoas, da exclusão de uma parcela cada vez maior dos trabalhadores do mercado formal de trabalho e de qualquer possibilidade de vivência digna na sociedade. O desemprego, que é essa coisa monumental que nós vivemos no Brasil, não ocorre só aqui, e não há perspectiva de mudar isso para melhor enquanto prevalecer essa forma de organização do capital. Agora isso traz implicações do ponto de vista econômico e traz implicações do ponto de vista da organização do processo de produção das empresas. Então isso que eu descrevi para vocês da Mannesman, que tinha, sei lá, 11 mil empregados e tem 4 mil hoje, é o que se vê na Volkswagem, que acabou de fazer uma discussão e conseguiu aprovar um acordo que prevê a demissão de 3 mil e 600 companheiros até 2008. E você veja que a Volkswagem é uma das montadoras de veículos que tem mais lucros no mundo, particularmente nas unidades que ela possui no hemisfério sul, sendo que a do Brasil e da África do Sul são as mais lucrativas. As unidades que ela tem aqui no Brasil são as que dão mais lucro em todo o grupo no mundo todo. Então, por que é preciso demitir 3 mil e 600 pessoas? Isso leva a uma discussão que é política, ideológica, que tem a ver com os interesses vigentes na sociedade. Tem uma outra dimensão que é demonstrar que não é necessário esse ajuste que a empresa está fazendo para que ela possa obter lucro.

Você pode até, dentro dos marcos de uma sociedade capitalista, convencionar a idéia de que: “Bom, o lucro é necessário, senão a empresa não pode sobreviver e demite todo mundo.” Essa é a idéia da qual eles partem. Demonstrar que deste ponto de vista, de que o lucro é necessário senão a empresa fecha, a empresa pode perfeitamente manter os trabalhadores que tem sem demiti-los, sem causar o problema social que vai causar, não é uma coisa secundária para o debate em toda a sociedade. Então essa coisa é uma coisa que nós vamos ter que fazer, essa discussão é uma discussão que está colocada hoje.

Então estudar como que é o processo, como se dá hoje a organização do processo de trabalho, como há essa relação das cadeias produtivas, a relação entre os diversos grupos econômicos. Por exemplo, se você pega o setor de autopeças aqui no Brasil, tínhamos duas mil empresas até pouco tempo atrás, hoje deve existir um pouco mais de duzentas e concentradas na mão de multinacionais, na sua maioria. Então estudar esses processos para que a gente tenha argumentos não só para a luta no cotidiano, para discutir com a categoria, mas, fundamentalmente, para discutir com a sociedade. Porque aqui há um problema que tem a ver com a característica da sociedade. Você não tem uma solução para um problema especifico que você enfrenta no seu local de trabalho sem enfrentar o problema geral. Para você enfrentar o problema geral, você tem que criar opinião. Não é só a mobilização da categoria. Você tem que fazer a mobilização da sociedade. E os sindicatos têm que aprender a combinar essas duas coisas, porque o Sindicato não pode limitar a sua atuação só na sua esfera específica ali da empresa, da categoria. Porque a capacidade de solucionar os problemas é muito limitada. Agora ele não pode só fazer a luta ideológica ou a luta política geral na sociedade. Ele tem que fazer a luta concreta dele ali na categoria, no local de trabalho. Para isso ele precisa de informação, ele precisa de dados, de conhecimento. E é muito difícil cada sindicato sozinho produzir esse conhecimento. Esse é o papel que eu acho fundamental do DIEESE, enquanto um Departamento que atua para todos os sindicatos.

Eu acho que é muito importante o DIEESE conseguir combinar essa coisa do levantamento de informações na dimensão mais concreta do processo de produção, a relação entre os grupos empresariais e também avançar no estudo das condições econômicas do país, das conseqüências que tem para o país o processo de subordinação que a gente vive em relação aos interesses do capital internacional. Não há nenhuma política econômica que se aplica no país sem passar pelo crivo do FMI. E as políticas econômicas têm conseqüências concretas na nossa vida. Então, essa dimensão mais geral da luta política, que sempre foi importante na época em que nós vivemos é mais importante ainda, ela também acaba cobrando resposta dos institutos que ajudam na formulação da política dos trabalhadores.

Por isso que eu gostei desse estudo do DIEESE sobre a dívida, mas eu acho que era importante ter uma coisa mais densa, que tomasse de forma mais completa a análise disso. Mas deve ser muito difícil de fazer isso porque não vai haver acordo com as Centrais Sindicais. Qualquer estudo mais sério que seja feito da questão do endividamento, por exemplo, ou da subordinação das políticas econômicas, das reformas que se aplica aqui, com os acordos internacionais que são feitos é barrado pelas Centrais. A Reforma da Previdência, Reforma Trabalhista, Reforma Sindical estão todas previstas nos acordos que o governo assina com o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. Uma análise mais precisa disso, acho difícil que o DIEESE possa fazer por causa das implicações políticas. Não acho que haveria acordo, por exemplo, na direção da CUT de formular um trabalho sério nesta área. Um trabalho sério nesta área vai levar, necessariamente, a retomar aquela bandeira histórica no movimento sindical brasileiro, que é parar de pagar a dívida externa e interna, isso leva a um choque com aquilo que o governo está fazendo.

 

Avaliação/Trajetória de Vida

A militância é fundamental na minha vida. Eu não consigo enxergar minha vida por fora disso mais. Pode ter sido pela forma que eu entrei nisso ou a forma pela qual eu me relaciono com as coisas, mas isso acaba tomando quase tudo. Fora dessa atividade sindical, da atividade política, houve muito pouca coisa na minha vida. Mesmo minha vida pessoal, minha vida afetiva, a minha vida é muito cruzada por isso. Evidentemente eu vivi muita coisa legal, muito bonita. Tem gente de quem eu gosto muito, adoro muito, mas a minha vida é muito cruzada por isso, tumultuada por isso.

Eu não consigo me enxergar como uma liderança política, liderança sindical, essas coisas. Tem pelo menos uma parte de nós que viveu este processo todo, que faz um esforço consciente para tentar manter o pé no chão. Porque uma boa parte da geração nossa se perdeu nesse negócio. Eu conheci muita gente que começou a militar comigo e depois se perdeu. Subiu à cabeça o negócio e... Sei lá, tem n exemplos que eu poderia citar aqui, de gente ultra-esforçada, trabalhadora, gente séria e que se perdeu de uma forma que você olha e não acredita.

Agora, fora isso, essa vida nossa, se a gente entende ela com esse ponto de vista, é uma vida que é muito sacrificada. Você trabalha muito mais do que as outras pessoas, ganha muito menos do que as outras pessoas porque necessariamente é assim, você acaba tendo um tipo de atividade que te leva a deixar sua vida profissional de lado e vai vivendo nas condições que é possível viver, você tem muito pouco tempo para a família, para o lazer. E particularmente quando te liberam da atividade na fábrica, no meu caso eu sou metalúrgico, para atuar no Sindicato, isso gera uma contradição porque você é dono do seu tempo. Então das duas uma, a maior parte das pessoas passa a usar o tempo para tocar a sua vida, vão estudar, vão fazer não sei o quê; outros começam a levantar mais tarde e outros, para tentar se cuidar, começam a trabalhar mais do que trabalhavam. Então eu tenho uma jornada de trabalho que é de 12, 14 horas por dia, pelo menos. Sem fim de semana, sem direito a nada. Porque você vai marcando uma coisa, vai marcando outra e eu fico sem jeito de dizer: “Bom, não dá para fazer. Esse final de semana eu vou descansar.” É difícil, porque para as pessoas que estão organizando aquela atividade, é só aquela atividade; para mim é uma por dia. Mas se a pessoa pede e eu falo não para elas, não teve atividade. Então você vai se envolvendo com o trabalho de uma forma que te toma praticamente a vida inteira.

Agora, por outro lado, eu vou dizer uma coisa, não tem nada que a gente possa fazer da vida da gente que tenha mais sentido. E se você tomar conhecimento de como o mundo funciona, de como é que são as coisas e se você não consegue se desvincular disso, esquecer que o mundo é assim, não tem como você tomar a sua vida de uma forma melhor a não ser dedicando ela - ou uma parte dela - para mudar esse mundo. Para ver se as coisas são diferentes do que eram. Você pega hoje - para te dar um dado que eu estava vendo esses dias num trabalho da igreja - no Brasil, morrem 80 mil crianças de fome por ano. Aliás, o governo contestou, disse que é um absurdo, que está errado, que são só 40 mil. E o Brasil é um dos países mais ricos do mundo. Nós podemos produzir alimento para o Brasil inteiro e para mais da metade da América Latina com as terras que nós temos, que são próprias para produzir alimento. É um dos países que têm mais recurso mineral do planeta, não é só petróleo, é o nióbio, 98% do nióbio do planeta está aqui, está em Minas Gerais e no Amazonas, urânio, ferro, tudo. Por que diabos num país tão rico assim têm que morrer 80 mil crianças de fome por ano? Com os bancos batendo recorde de rentabilidade todo ano. Então se você se enfrenta com uma realidade dessas e não consegue se desvincular dela, a melhor coisa que você pode fazer da sua vida é um esforço para tentar mudar a sua situação. Então, dentro desse ponto de vista, eu não me arrependo de nada, de absolutamente nada. Se eu tivesse que fazer tudo de novo, ia ser tudo de novo. Ia tentar errar menos. Mas na forma de fazer as coisas, de trabalhar, de viver, eu ia fazer as mesmas coisas, tudo de novo.

O meu sonho é mudar esse país, mudar o mundo. Ou seja, é muita coisa. Na última campanha para presidente da República, acho que foi lá em Pernambuco, logo depois de um debate, chegou um menino que até apoiava o PT, apoiava o Lula naquela época e veio brincar comigo: “Ah, Zé Maria, você sabe essas coisas todas, porque você não quer se eleger?” E eu estava falando para ele: “Nós temos muito mais ambição do que o PT. A nossa ambição é muito maior. Porque tem uma parte das pessoas que tem como ambição arrumar um cargo público, virar deputado, virar presidente. E a nossa ambição é maior que isso, nós queremos mudar o mundo. Então não é pouca coisa, a gente quer fazer uma revolução, mudar a estrutura econômica, política e social do país. É uma coisa que nós não vamos fazer por nossa vontade, vai depender de um processo de organização, de mobilização muito grande.” E o meu sonho é esse.

A minha atuação sindical, na verdade, tem a ver com isso. É uma forma como eu me localizo na sociedade para essa luta. Então, um sentido que guia a minha atividade sindical é esse. É o objetivo político que nós traçamos neste grupo que a gente milita. Esse é o objetivo. Então a gente briga para melhorar o salário, para melhorar emprego, para impedir a aprovação da reforma trabalhista, para impedir a reforma da Previdência, mas tudo isso é paliativo. Porque é uma briga que não tem fim. É que nem na época da inflação que a gente brigava, como foi na greve da Mannesman, conseguimos 60% de aumento e passava uns dois meses e o aumento já tinha sido comido pela inflação.

Então é assim no capitalismo, você não tem como melhorar efetivamente a vida das pessoas. Pelo contrário, a condição de vida das pessoas vai se degradando cada vez mais. Então a nossa atividade do dia-a-dia tem a ver com defender as condições de vida das pessoas, mas, fundamentalmente, transformar essa luta em conscientização, em organização para que a gente possa mudar a estrutura das coisas e quando mudar a estrutura das coisas vai ter uma melhora de fato da vida das pessoas. Então é todo um trabalho de organização, de educação, de experiência para que as próprias pessoas cheguem à conclusão de que precisam de uma mudança mais de fundo e são elas que vão ter que lutar para mudar. Não somos nós, sozinhos, de um partido, de um grupo, isso não existe. Então o sonho é esse, a gente avançar nesse sentido. Se eu vou estar vivo quando isso acontecer, eu não sei, mas eu quero fazer a minha parte.

 

Família

Eu tenho um filho de sete anos que se chama Gabriel. Ele está estudando. Mora com a mãe aqui em São Paulo. Ele é muito legal. Me ligou agora quinta-feira passada, eu estava, acho que em Brasília, e falou que tinha tido eleição na escola dele para presidente e para governador e que ele votou nulo. Votou nulo para presidente e votou nulo para governador. E aí eu falei: “Porque, filhote, você votou nulo?” “Ah, pai, ninguém presta”. Ele deve estar vendo TV. O noticiário da televisão, as pessoas que vêem, qualquer um que vê aquilo, a conclusão que chega é essa.

Encontrei com ele no começo da semana, a gente conversou um pouco, depois ele perguntou: “Papai, o partido do senhor lançou candidato?” Aí eu falei: “Lançou filhote, mas aqui em São Paulo, só lançou para senador e para deputado.” Porque aqui nós apoiamos o candidato a governador, Plínio [Plínio de Arruda Sampaio] do PSOL [Partido Socialismo e Liberdade] e a candidata a presidente, Heloísa Helena. E ele falou: “Ah bom... não teve votação nem para senador, nem para deputado.“ Acho que ele quis dizer: “Eu falei pro pai, não votei nulo nem no partido dele.” Ele é muito legal.

Quando eu fui candidato [à presidência da República, pelo PSTU] a última vez [2002], ele tinha três anos. Ele falava o tempo todo para os amigos da escola que o pai dele era candidato a presidente da República e ia ganhar. “Porque vai ganhar, vai ganhar, vai ganhar...” E eu conversava com ele. Aí teve o resultado da eleição, ele me ligou e falou: “Papai, a Lula ganhou”. Ele falava a Lula, porque “Lula, não pode ser o Lula”. E: “A Lula ganhou, mas o senhor também ganhou, papai.“ “Então tá bom....” Ele é muito legal.



Avaliação/Projeto Memória

Achei legal esse projeto por duas razões. Primeiro pelo papel que o DIEESE cumpriu e cumpre até hoje. Eu valorizo muito isso. Segundo, porque vai além da minha relação profissional, tem pessoas que trabalham no DIEESE que eu gosto muito e respeito profissionalmente. Então achei muito legal poder ter dado esse depoimento. É necessário estimular as direções sindicais a estudar para compreender melhor o que está acontecendo no mundo, particularmente no processo de produção das empresas cujos trabalhadores ela representa. Senão, acaba promovendo um tipo de ação sindical que tem pouca consistência.

 

 

 

 
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