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Página Inicial nossas_historias_menu Francisco Urbano Araújo Filho

Francisco Urbano Araújo Filho

francisco_urbano_araujo_filhoHistória de Vida

Identificação

Sou Francisco Urbano de Araújo Filho, natural de São Paulo do Potengi, cidade do Rio Grande do Norte, nascido em 12 de dezembro de 1941. Urbano é como sou conhecido. Francisco, não sabem quem é não.

 

 

Família

 

 

Meu pai chamava Francisco Urbano de Araújo e minha mãe, Antonia Nogueira de Araújo. Todos de São Paulo do Potengi. Sempre trabalhamos na roça, na propriedade dos outros, de “meia”. Chamávamos de lavoura branca, milho, feijão, batata, coisas que não eram de lavoura permanente. Também tomávamos conta do gado do proprietário. Meu pai era meeiro e vaqueiro ao mesmo tempo, de um proprietário médio, que era inclusive parente dele, casado com uma irmã dele.

Tenho mais nove irmãos. Somos ao todo dez e eu sou o quinto, filho do meio. Quinto de baixo para cima e de cima para baixo. Meeiro é, na linguagem técnica, parceiro agrícola. A metade da produção é entregue ao proprietário. Com a outra metade, pagávamos as contas e, se sobrasse alguma coisa, era da gente.

 

 

Infância

 

 

Minha infância foi no Nordeste, trabalhando na propriedade dos outros. Trabalhava desde criança, desde os sete anos. Lembro que uma das atividades que era feita pelos filhos menores, que não podia pegar no pesado, era puxar o boi ou cavalo para cortar, arar a terra. Tinha o arado, o boi ou o cavalo não faziam sozinhos. Aquele que era mais bravo, tinha que segurar o arado atrás. Essa era a atividade dos pequenos, que ainda não podiam fazer atividade com força física. Você andava o dia inteiro e, às vezes, tinha que fazer isso correndo, não era devagar. Mas, quando era para você fazer o quadrado para o plantio, riscávamos a terra - como eles chamam -, fazíamos as cruzes para fazer ruas; então, isso era planificado. Depois era tomar conta, ajudar o velho a levar o gado para o curral. De manhã, não tirávamos o leite, porque o velho não deixava. Ele é que sabia fazer isso, mas levar o gado para o curral, levar o gado para dar água, levar para cacimba, trocar de um pasto para outro e fazer, especialmente, a parte de plantio e colheita. Trabalhava com algodão, que era a principal atividade. Você tinha o plantio e a colheita. Como a família era grande, raramente a gente alugava pessoas para ajudar, como eles se chamavam lá, em vez de se assalariado; se alugava o trabalho de alguém para ajudar a gente, só quando se estava apertado. Por exemplo, na colheita do feijão ou do milho, se a previsão era de um tempo de chuva, se chovesse você perdia, então você tinha que correr, todo mundo correndo naquela semana. Ás vezes, a gente não pagava a pessoa, pagava com trabalho, ia trabalhar na lavoura dele quando ele precisasse. Era uma vida do interior e no final de semana, eu fazia o quê? Quando tinha - naquela época, ainda tinha muitos córregos, rios, tinha água -, ia tentar pegar uma piaba por lá, dava uns pulos naqueles poços, quando os pais deixavam, por medo de afogamento. E brincava com cavalo de osso, pegava o osso quando os animais morriam. Tem um osso que é igual a um boi ou a um cavalo, um animal igualzinho, então aquele era brinquedo nosso. Tínhamos cavalo de pau, que meu pai ensinava a gente a fazer ou ele fazia, e os brinquedos de rolimã, bola de gude. Infância de interior. Você vai crescendo, acompanha o pai na missa, na igreja, tem a festa de final de ano. A grande festa que todo mundo sai da roça para ir a cidade assistir a missa. Eu era garotinho, tomava um suco... Nessa época não se bebia, não tinha dinheiro. Infância de interior é essa, principalmente há muitos anos atrás. Não tinha rádio, não tinha televisão, não existia isso. Tinha o quê? Bodoque, estilingue para matar pássaro, é bom para acertar. Não tinha outra coisa a ser feita. Quando chovia muito, havia uma fruta chamada quixabeira, dava muita quixaba, doce, preta, parecida com pitanga... Não, era uma frutinha preta parecida com a jabuticaba, só que menor. Íamos colher para comer, para brincar. Lá também tinha muito pasto, juá, juazeiro. Já não era na época das chuvas, era época de intervalo. Juá não dá na época da chuva, dá na época de colheita, quando termina a chuva, chamado inverno, para a gente lá. Inverno não este de vocês aqui [em São Paulo], inverno de chuva e juá dá neste período, na época de colheita de algodão. Você tinha isso, uma ração muito boa para bode, porco, é muito bom para ração, doce, forte e essas coisas do mato mesmo. Mas não era ruim não. Havia as condições de falta de dinheiro, mas a vida era boa.

As festas de São João ou de Natal quando se juntava aquele povo em casa. Era tudo parente um do outro. Juntavam-se os pais, a família, fazia almoço junto, e isso criava um ambiente que chamávamos de confraternização. Juntava todo mundo ali para comemorar, beber. O mais era tomar uma pinga, um vinho. Meu pai, muito novo, tomava pinga; depois, não tomava mais, e a gente, muito novo, ficava acompanhando. Talvez tenha sido o grande evento da casa do meu pai, que era um meeiro, mas era o ponto de referência de toda a juventude dali e dos mais velhos de lá. Quase nunca íamos à casa dos outros, mas todo mundo ia lá. Feriados, final de semana, iam para nossa casa. Ficavam no alpendre, na calçada, uns jogavam baralho. Às vezes, dava muita confusão, mas dava uma coisa que era uma relação muito importante das pessoas, criava um clima de relacionamento. Eu acho que isso talvez seja a coisa que mais me marcou, que foi a referência da minha infância. Sempre lembro, como um espelho, daquelas coisas na minha frente, das reuniões. Talvez, tenha sido isso o que me ajudou a fazer tantas reuniões mundo afora. Eu lembro essas coisas sem nenhuma referência de conteúdo, porque não existia isso. Tenho algumas coisas que me marcaram negativamente e eu prefiro não falar.

 

Militância Política

Eu sempre fui um garoto muito inquieto e talvez tenha sido até muito chato com minha família e com meu pai. Eu era muito questionador e cheguei até a deixar a casa um tempo por conta disso, fiquei fora de casa e fui morar com um irmão meu. Exatamente em 61, quando eu saí daquela fazenda São Luiz para a fazenda Várzea Fria. Meu pai foi antes, e depois eu fui para lá. Nessa época, começou um negócio chamado Juventude Agrária Católica, a coisa mais reacionária que eu já vi no mundo, depois daquele grupo religioso de defesa da Propriedade e da Família. TFP. Uma coisa muito reacionária. Mas tinha um elemento que chamava para conversar e criava um ambiente no final de semana, jovens, todo mundo discutia e eu como era bastante inquieto com isto, questionava muito. E não digo que foi daí que eu que despertei para isso, mas fui despertado para mim. Alguém me provocou: “Esse cara é tão inquieto, vamos chamá-lo para fazer um curso de sindicalismo.” Foi nesse curso de sindicalismo, em 61... Passei uma semana, em novembro de 61, o curso começou no dia 11, era um domingo, dia de chegada, e passaram cinco dias, do domingo até sexta-feira nesse treinamento. O Zé Rodrigues, a Lílian [técnica do DIEESE] conhece demais, já era meu professor, com 21 anos de idade e presidente da Federação dos Trabalhadores [Rurais] e deu minha primeira aula sobre sindicalismo. Eu não entendia qual era o nosso papel; o que sofríamos com a meia, com a renda. Discordávamos pelo tudo que plantávamos e dávamos para o proprietário e quase não ficávamos com nada porque pagávamos as despesas. Sobrava muito pouco. Mas não tinha o despertar ali de como é que você resistia ou você questionava, questionava porque faltava, mas não de consciência. A partir desse treinamento é que eu fui ter realmente a noção do mundo sindical, do mundo político, e que comecei a me afastar. Fui me afastando cada vez mais da orientação da Igreja, daí pra frente. Efetivamente, comecei a ter noção do que podíamos chamar de mundo do trabalho, qual era a relação que tinha daquele proprietário com a gente, de entender porque faltavam as coisas. Mas não entendia; pelo menos eu. Foi a partir daí entrei na vida sindical.

 

 

Trajetória Sindical

 

 

Quando voltei desse curso, recebi um título, um documento, que me indicava como líder rural. Recebia do município para ir convencer o pessoal a ser sindicalizado. Quando foi em setembro de 62, como eu atuava muito, era viajado, todo domingo estava no sindicato, fui chamado para assumir, no sindicato, o cargo de suplente da diretoria. De 62 até 65, eu participei como suplente. Veio o golpe [militar], teve muitos problemas. Nesse período, eu fui assumindo um papel mais de comando do sindicato, porque o presidente não tinha tempo. Quem tomava conta do sindicato era eu, ele só assinava as coisas. Eu era um garoto muito novo, e mais pelo, vamos dizer assim, impulso, pela vontade, do que por ter ainda a firmeza das coisas. Em setembro de 65, eu fui eleito presidente do sindicato. Em novembro de 66, fui eleito vice-presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Rio Grande do Norte. Como a Federação não tinha dinheiro para bancar um presidente, um secretário e um tesoureiro, na capital - porque eles tinham família muito grande e dariam muitas despesas, e só o presidente não daria conta de fazer um trabalho de recuperação do movimento sindical no Rio Grande do Norte -, eu fui convidado para assumir a vice-presidência da Federação. Meu salário era uma gratificaçãozinha, era menor porque eu era solteiro; o presidente tinha uma família maior. Para se ter uma idéia deste trabalho de recuperação, que precisava ser feito, em 65, tínhamos 66 sindicatos no Estado, mais ou menos, com 65 mil trabalhadores sindicalizados, era uma coisa muito forte. Em 67, nós estávamos com 12 sindicatos abertos e mil associados. Caiu para esse ponto! A maioria dos sindicatos estava com a porta fechada, o material escondido, material de sindicato mesmo, mesa e carteira, e alguns guardavam em casa e mandavam umas cartinhas para a Federação sem se identificar como presidente e sem dar o endereço. A partir disso, em 67, eu deixei de trabalhar na roça efetivamente. Meu pai ficou lá e eu tive que tomar conta desse trabalho. Daí eu fiquei até 1998.

 

Contag

Só deixei de ser dirigente sindical em 98. Em 67 eu fui vice-presidente. Em 69, assumi a presidência da Federação dos Trabalhadores Rurais do Rio Grande do Norte e, em 74, eu fui para a Contag [Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura], como secretário-geral. Fiquei 24 anos na Contag, costumo dizer que só não fui faxineiro por lá, mas andei bem perto. Secretário, tesoureiro e presidente em dois mandatos. Em 98, eu tive que sair, na eleição do Manoel Santos, que é o atual presidente da Contag. Mais da metade de minha vida foi dedicada exclusivamente à atividade sindical. Em 66 participei do I Congresso da Contag. Não congresso dos trabalhadores rurais, pois destes tinha tido muitos outros, mas coordenado pela Contag. Foi aqui em São Paulo, nos hospedamos no Pacaembu [estádio municipal de São Paulo], e fazíamos o congresso na Rua Riachuelo, num cinema, Cine Riachuelo. Isso foi em 66, um ano difícil. Quem coordenava o congresso, o presidente da Contag era o interventor, daquela ditadura. O presidente do Incra, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, é que bancou financeiramente e o presidente do Incra queria controlar. Mas, nós, do Rio Grande do Norte, Pernambuco e Ceará fizemos um bloco e conseguimos dividir a metade do Rio de Janeiro para se contrapor às teses desse congresso. O congresso só aprovava elogios ao governo e à ditadura. Mas, o Rota caiu na besteira, junto com o presidente do Instituto, na época o coronel Eudes, de nomear um advogado nosso, do Rio Grande do Norte, para fazer o relatório final. Seis horas da noite ele começou o relatório e se mandou, encheu a cara e carregou os papéis todinhos, chegou à meia-noite e escreveu até as cinco horas da manhã e entregou o relatório totalmente ao contrário do que tinha sido feito. Os caras foram obrigados a fazer um outro relatório, não dava para repetir o mesmo porque eles botaram na ata só besteira, e tiveram que fazer uma coisa meio razoável. Nós tivemos que ficar fora, no Pacaembu, e só se apresentar na hora da aprovação, porque corria o risco de saber quem foi, quem não foi. O Edson entregou o relatório e puxou a mula. Pegou a mala dele e se mandou, porque ele podia, em 66, ser preso. Disse: ”Vocês se viram depois. O mais complicado sou eu, que fiz o relatório, mas se prenderem vocês, eu sei onde estão e volto.” Na verdade, ele não foi embora para Natal, ele ficou aqui na capital, mantendo contato com outras pessoas que ficaram lá para saber se estava acontecendo alguma coisa com elas. Como não aconteceu nada, fomos todos embora. A partir disso, no nosso processo, teve uma coisa que acho importante. Já em 67, a Contag, que vivia uma situação muito difícil. Tinha um interventor e estava sem recursos. Foi a Contec, a Confederação dos Bancários, que ajudou a sustentar a Contag, no Rio de Janeiro, para ela continuar, ter lugar para trabalhar e arranjando recursos para ir sobrevivendo. Nós também precisávamos de dinheiro, mas nesse mesmo ano de 67, com apoio do próprio sistema, foi feita uma cobrança de imposto sindical e começou a entrar um dinheiro para a Contag. Mas os grupos do Rio de Janeiro, todo o Nordeste, exceto a Bahia, que não era confiável, mantiveram-se unidos contra a intervenção. Organizou-se via Zé Rodrigues, que vivia no Rio de Janeiro, clandestino, com a Contec, do Rui Brito, um congresso intersindical. Veja que maluquice! Um Congresso Intersindical em 1967. Contag, bancários e uma parte da CNTI, os trabalhadores da indústria. Organizou-se um congresso para discutir a relação intersindical, mas o objetivo principal era unir os camponeses para tomar a Contag. Foi daí também que se lançou a candidatura do Zé Francisco. Aliás, foi uma coisa fantástica porque, naquele período, conseguimos realmente articular um processo de praticamente destruir o presidente da Contag, porque ele teve quinze minutos para falar na abertura do congresso. Depois falou, caíram na besteira de selecionar um camponês delegado para falar em nome dos camponeses delegados. Nós montamos um esquema de que cada um podia se inscrever para falar um minuto. O Zé Francisco se inscreveu e nos inscrevemos atrás. 45 pessoas. Isso marcou uma chapa de oposição. Tocamos o barco, repetimos algumas reuniões regionais e, em 68, tiramos a Contag da mão da ditadura.

Eu participei desse processo. Não era figura da frente, eu era um auxiliar nesse processo. Na frente era o presidente da federação. Eu ajudava, mas eu não aparecia nisso, como pessoa que fosse líder. Líder era o presidente da federação e os outros. Foi uma coisa importante, nessa eleição; a coisa mais linda; nós tínhamos onze votos, eram onze federações e tínhamos onze votos na chapa de oposição ao candidato da ditadura, nomeado pela ditadura. Ganhamos por um voto. Mas, o mais fantástico não foi isso. Começou a apuração: “Um, dois, três, quatro, cinco...” Tudo para o Zé Rota. Não podíamos perder. Aí começou Zé Francisco, Zé Francisco, até o último voto. Ganhamos por um voto. Saiu exatamente dessa maneira. E a gente tremendo de medo, porque se perdêssemos alguns seriam presos ali ou as federações sofreriam intervenção, com certeza, do Ministério do Trabalho. Se ganhássemos, tínhamos medo de não haver posse. Essa história é mais comprida e eu não posso dizer agora, porque eu não tenho autorização contar esse fato de porque houve a posse e como que garantiram isso. Não posso dizer porque quem fez a articulação não está aqui e eu não tenho autorização para dizer isso. Conseguimos fazer a posse do Zé Francisco. Seguimos os nossos congressos. Em 69, eu assumi a Federação do Rio Grande do Norte e tivemos outros congressos. Em 67, eu fiz uma viagem muito boa para Medelín, na Colômbia, para participar de um Congresso Latino Americano de Sindicalistas. Não podíamos sair do país, naquela época. Consegui, com um padre lá no Rio Grande do Norte, um documento que dizia que eu iria para uma reunião eucarística, um negócio da Igreja, coisa assim. Fomos para lá, veja só. No segundo dia em que nós chegamos teve uma greve de professores e o presidente da Confederação dos Professores foi preso, em Medelín. Então, entramos em greve, fomos para a rua. O Exército chegou, prendeu o cara, meteu ferro em todo mundo, e o presidente da República baixou um decreto dando 24 horas para que a gente se recolhesse a um hotel, não aparecesse na rua, não falasse, sob a pena de todos serem deportados. Imagine se fossemos deportados?! Morria quando chegasse aqui. 67. Passamos 24 horas dentro de um hotel, no apartamento, não podia descer no salão do hotel, no hall do hotel, nem almoçar no restaurante. O almoço era levado no quarto. Só 24 horas depois é que foi permitido sairmos. A greve foi muito forte, o presidente teve que recuar. Soltou o presidente da confederação, e voltamos ao congresso depois. Foi aí a vida sindical, começaram as lutas. Essas questões, em 68, foram importantes e a Contag definiu, porque todas as federações tinham problemas internos, com sindicatos em crise, qual seria a linha para atuar. A nossa federação, a, do Rio Grande do Norte, não sofreu intervenção, o presidente foi cassado, colocado para fora e obrigado a se afastar do Brasil. Pernambuco sofreu intervenção, Ceará sofreu intervenção, muita gente presa. E assim por diante. Mas esse grupo continuava se organizando. Pernambuco tinha um Partido Comunista muito forte e a Igreja também. A Igreja teve uma atuação muito grande, ela teve um papel importante sim, mas, na minha opinião, ela foi o atraso do movimento sindical brasileiro, porque ela fez todo um trabalho para combater os comunistas. Mesmo que ela tenha tido um papel importante na organização, em alguns casos do apoio de alguns padres, que apoiaram quando alguns companheiros foram torturados ou coisa parecida.

 

Greves

Em Pernambuco, houve uma greve muito forte, no governo Arraes [Miguel Arraes], no setor canavieiro, que deixou uma marca daquele processo. Isso foi em 63. Foi a primeira greve dos canavieiros. Logo depois veio o golpe. A Liga Camponesa da Paraíba, por mais repressão que tenha tido, a greve também teve um papel muito importante. No Rio Grande do Norte, nos três, quatro ou cinco municípios em que ela [a greve] estava chegando, veio o golpe. Lembro-me que na primeira greve dos canavieiros, em 82, o Moacir Palmeira, encontrou um grupo de trabalhadores numa comunidade, senhores já de idade, e quanto mais ele falava, mais eles olhavam com tristeza e falavam: “Doutor, essa conversa que você está falando, eu conheço muito mais.” Teve um que contou que era um dos líderes da Liga Camponesa, que teve de se esconder dentro do mato durante muito tempo, se afastar dos parentes para não ser preso. Foi buscar a carteirinha do sindicato que ele tinha enterrado, ele tinha feito uma outra, mas aquela ele foi buscar.

 

 

Trajetória Sindical

 

 

Tem coisas que não acabaram nesse processo, e aí veio a luta. Em 68, o quê fizemos? Para poder marcar uma linha em nível nacional, criamos o Plano de Integração Nacional, uma ação unitária da Contag, uma nova Contag com as suas federações e dirigentes sindicais bons, dirigente sindical com carteira do Dops. Tínhamos até dirigente sindical “dedo duro” do Exército, mas faltava uma orientação básica. Nós definimos uma formação de quadro sindical, uma ação de defesa dos assalariados, uma ação em defesa da reforma agrária e uma ação em defesa da política agrícola. Porque os pequenos agricultores do Rio Grande do Sul queriam romper conosco. Falavam que não sabíamos o que fazer porque eles já tinham terreno, já tinham vaca e queriam discutir leite, preço de leite. Alguém dizia: “Esses fazendeiros ‘véios’, aqui, é tudo bandido!” Porque estávamos discutindo a tese do que comer e eles estavam discutindo preço de leite. Esse foi um problema muito complicado, mas antes de definirmos isso, foi criado um Programa Nacional de Formação. Uma formação que não estava escrita nos papéis, conversávamos com o trabalhador, não podia escrever tudo. Dávamos a linha básica para o dirigente não ser preso. Era 68. Tinha orientação para os trabalhadores sobre o direito agrário brasileiro, o Estatuto da Terra. O Castello Branco [presidente da República, no Governo Militar] tinha feito o Estatuto da Terra e, junto com o documento, tinha a mensagem que ele mandou para o Congresso [Nacional]. A mensagem era muito boa, foi feita pelo José Gomes da Silva e mais dois que trabalharam com ele e redigiram o Estatuto da Terra. O José Gomes é muito conhecido, não sei como a ditadura militar o chamou. Tinha uma visão contrária à da “milicada”, e o Estatuto era muito bom. Dos assalariados, não dizíamos nada por escrito, porque havia sido o João Goulart [presidente da República]dente da Repo Militar que tinha assinado a Lei dos Trabalhadores Rurais Assalariados. Fazíamos, mas não botávamos no escrito, porque se dissesse que tinha sido João Goulart era a coisa. Eu fui, depois, diversas vezes na Delegacia do Trabalho porque ao falar na lei trabalhista, na agrária, eu dizia: “Eu só falo se o senhor perguntar.”

 

 

Contag

 

 

Muitas vezes, dependendo do lugar, você não dizia isso, você dizia que era a CLT [Consolidação das Leis do Trabalho] e foi aí que recuperamos a Contag, em 67. Quando nós chegamos, em 69, ou em 72, tivemos outro congresso. A data não me lembro agora. Nesse Congresso, aprovou-se em nível nacional - primeiro no conselho, depois no congresso -, a unidade de todos os trabalhadores, para que os sindicatos dos pequenos produtores não deixassem a Contag e permanecessem juntos. No Congresso de 73... Esse foi um congresso muito forte, muito pesado, foi proibido gritar o nome “reforma agrária”; só teria o congresso se não tivesse a expressão “reforma agrária”; se não falasse do Fundo de Garantia, contra o Fundo de Garantia. O Ministério do Trabalho nos comunicou que só ia deixar realizar o congresso se fizéssemos isso. Mas deixou e nós fizemos o congresso com mais de 50 policiais federais e foi um delegado da chapa participar do congresso. Mas, a turma gritava “reforma agrária”, o que não podia dizer. Foi daí que eu fui convidado a ser candidato na Contag, em 74, porque eu rompi contra a orientação de que não era para falar da reforma agrária, do Fundo de Garantia. Eu estava presidindo a comissão e fizemos o enfrentamento. O Heraldo Lino de Azeredo, do Rio de Janeiro, foi o principal sustentáculo, para mim. Ele era desse tamanho [indica a grande estatura do Heraldo Lino], ficava atrás para podermos fazer o enfrentamento. Em 74, eu fui indicado para ser o secretário-geral da Contag. Neste período, o pessoal começou a fazer reuniões para discutir qual era o enfrentamento efetivo contra o regime militar. O que podíamos fazer efetivamente? Qual era o caminho? Ás vezes, chegávamos à conclusão de que o caminho era só esse. Não tínhamos outro espaço, não podíamos fazer publicamente. Os partidos eram todos clandestinos. Só existiam a ARENA e o MDB, e o MDB era considerado comunista; alguns dirigentes não podiam aparecer lá e não podíamos falar muito nesse negócio de comunismo no sindicato, não. Se você falasse, você ia ficar por fora porque o pessoal tinha medo. Então, começou esse processo e foi crescendo, em todo o país, a luta contra o regime militar. Para contar mais rápido, passando por muita coisa... A Contag foi crescendo, seus congressos... Em 1979, no congresso, foi decidido o seguinte: a Contag vem fazendo muito programa de formação, capacitação e orientação dos conflitos; já tinha muito conflito mais pela resistência, mas você não fazia a luta coletiva; você não botava a turma na rua para o enfrentamento; por uma ocupação de terra; não reunia o pessoal mais forte.

 

Assessoria/Negociação

Em 78, haviam começado as lutas do sindicalismo na região. Pernambuco se organizava para fazer uma greve, uma campanha salarial, em 79. Os canavieiros. A Contag definiu que a programação de formação, como se fazia antes, não era mais prioridade. A prioridade eram as lutas coletivas, de grandes discussões. Foi aí que saiu a primeira greve, em 79, dos canavieiros de Pernambuco. Antes disso, você fazia muito debate na Contag chamado Análise de Conjuntura que caía sempre na questão salarial. O salário mínimo, da época, era o que você podia brigar. Você não tinha muita força para fazer greve e aí entrou o grande papel do DIEESE com a gente. Nessas Análises de Conjuntura, o DIEESE fazia muitas palestras, tratava da conjuntura econômica, da relação internacional, da política salarial. O [Walter] Barelli fez muitas palestras para nós. Lembro uma das famosas, em 75,76, em que foi um representante do DIEESE fazer uma palestra e deu muito problema, porque nós tínhamos os caboclos do Sul que estavam lá e eram todos pequenos proprietários, que tinham trabalhadores. Foi uma pauleira e quase que quebra a Contag no meio para defender os direitos trabalhistas. A partir de 79, houve um entendimento mais permanente com o DIEESE, que teve um papel importantíssimo na Contag e no movimento sindical assalariado, na compreensão, especialmente, da negociação coletiva, onde não tínhamos experiência. Só tinha quem era mais corajoso, conflito, enfrentamento, mas processo de saber negociar, fazer a formulação de uma pauta, isso a gente não sabia. O DIEESE teve um papel muito importante na formação de nosso pessoal, na área de negociação trabalhista. Temos muito orgulho de trabalhar com o DIEESE, não posso citar o nome de todos, não dá para gravar o nome de todos, mas o Barelli foi uma figura importante, Reginaldo Muniz, Lilian Arruda [Marques], a Suzanna [Sochaczewski]. Eu me esqueço o nome dos outros, mas foram todos muito importantes e tocamos juntos, a vida sindical.

 

 

Trajetória no Dieese

 

 

Ouvíamos falar do DIEESE. Sabíamos que existia, mas não tínhamos uma relação direta, até por conta do tipo de luta que era travada; você não tinha uma ação coletiva para assalariado, porque você não tinha força, não tinha espaço para isso. Estava falando da formação do cara do sindicato, ir para a Justiça. A orientação qual é? “Ah, o patrão negou seus direitos, vai para a Justiça.” Não é o Estado de Direito? A ditadura não dizia isso? Então, vai para a Justiça do Trabalho, que era para criar a consciência nos trabalhadores e das lideranças também. Mas você não podia fazer ainda muita coisa, eles não deixavam.

 

 

Avaliação/Movimento Sindical

 

 

Tem uma diferença nessa relação, entre sindicalismo no campo e na cidade. Vou dizer na linguagem nordestina: de léguas e léguas. Na cidade, o operário pega um ônibus e vai para fábrica, trabalhar, fora da sua casa. No campo, naquela época, o cara morava na fazenda, dentro da fazenda, com capanga. Muitas vezes o fazendeiro morava na fazenda ou o gerente da fazenda mora lá. O capanga mora ali, ao lado da casa do trabalhador. E esse cara ter coragem de ser sindicalizado, falar em sindicato e fazer reunião do sindicato é uma diferença brutal. Outra coisa é sair do trabalho, da fábrica, da loja e, de noite, ir para uma reunião do sindicato. Ou no final de semana. Outra são os trabalhadores rurais que vinham ao centro, nos domingos, nos sábados, nas feiras, e iam para a reunião do sindicato, pois isso era mais importante nesse dia. Muitas vezes, tinham que voltar num caminhão do capanga da fazenda, que era seu vizinho na fazenda. Não tinha meio de transporte, era caminhão, pau de arara, na maioria do país, ou a pé. Tudo isso é uma diferença grande de construção, numa época de regime fechado. De qualquer maneira, seja em regime fechado ou aberto, é uma diferença grande.

Por exemplo, um sindicato bem pequenininho no Amazonas, no Pará. O cara para ir à sede do sindicato, leva três dias de viagem. Eu fui ao Amazonas, em 1976. Saí às cinco horas da manhã, num barquinho; passei o dia inteiro, a noite inteira, o dia inteiro seguinte e só na noite cheguei à primeira cidade em que íamos fazer reunião, para conversar com o presidente do sindicato. No outro dia, para começar a reunião à nove horas, às sete da manhã tinha aquele monte de barquinho dentro do rio, porque no dia anterior, tinha ido um cara de barco, andado até chegar no meio do rio e soltar um foguetão bem alto, para dar o sinal para o pessoal que a reunião estava confirmada. Dois era o sinal que confirmava e que eles podiam vir. E eles estavam lá, às sete horas da manhã. Só que tinha gente que estava fazendo oito dias de viagem, para poder chegar à cidade. São coisas desse tipo. Não dá para comparar uma situação dessas no Pará, no Mato Grosso; é bem ali, seiscentos quilômetros; Minas Gerais, que é a “légua de beiço”, que se chama. É uma diferença muito grande fazer isso no campo e na cidade, além da relação extremamente cruel e perversa, apesar do patronato, porque em qualquer regime capitalista todo patrão é cretino e explorador e é contra os trabalhadores. Qualquer lugar, seja no campo, cidade. Mas esse da cidade é obrigado a ser menos cruel; no campo, não tinha lei; a lei do delegado era ele; ele que dava ordem ao delegado. O juiz tinha que morar na casa do fazendeiro na cidade, que é o prefeito. Você tem uma relação de poder muito cruel. É uma relação também muito difícil com o patronato. Se é complicado este negócio de patrão empresário, fazendeiro, é só para explorar, quanto mais moderno mais explora. Não tenho nenhuma dúvida disso. Quanto mais essas maquininhas são do patrão, mais desemprega. Porque a modernização não é favorável à maioria dos trabalhadores. Nunca foi. Ele pode se apropriar depois, mas no caminho fica muita gente. No regime capitalista, é claro, não tenho dúvida disso.

 

Avaliação/Trajetória de Vida

Eu tenho dificuldade de falar essas coisas, com todo o respeito. Porque eu fiz um exercício enorme de não querer parecer besta, porque eu estava na liderança, mas isso não se faz sozinho. Tem um monte de gente atrás da gente. Fiz um esforço enorme na minha vida de me tornar menos autoritário, porque dirigente sindical também tem algumas razões equivocadas de ser. De dizer, “eu, eu, eu”. Tenho uma dificuldade enorme em apontar o que foi importante como líder sindical.

 

 

Fato Marcante

 

 

Como cidadão, um momento muito importante na minha vida, foi o ano em que fiz uma viagem para o Maranhão como diretor da Contag. Foi um momento em que estava tendo muita violência, morte de camponês e nós tivemos que entrar numa fazenda, fazendo todo o tipo de trama para entrar, em Panarama, onde os fazendeiros estavam matando pessoas, tinham matado 60 pessoas lá. Tinha mais de seiscentas famílias de posseiros para serem expulsas e nós fomos para lá. O fazendeiro chegou de caminhão, num Chevrolet, apenas ele e o advogado dirigindo um outro carro. Nós pensamos, porque ele veio de caminhão? E percebemos que junto com ele, vieram um monte de jagunços. Eles chegaram e disseram: “Podem voltar, não vai ter reunião nenhuma aqui!” Na estrada, dentro do mato, estava cheio de jagunço armado para impedir a gente de fazer a reunião, mas nós fizemos assim mesmo e foi marcante. Por quê? Porque teve uma hora em que chegou um camponês e disse: “Aqui está cheio de jagunço deitado, com uma espingardinha 12 apontada para vocês. Mas não se preocupe não, vamos, venham de costa, encoste na casa de taipa, encosta aqui e olha assim de banda.” Para todo lado que eu olhava, tinha uma 12 apontando para nós E o camponês dizia: “Podem ficar certo de que não vão pegar nenhum de vocês. Se cair um de vocês, essa cambada dele não vai escapar, porque lá de dentro do mato tem um homem nosso com uma espingardinha atrás dos jagunços dele, que ele não viu quando chegou lá. Se eles são espertos, nós também somos espertos. Pode fazer a reunião”. E nós fizemos. Para sair de lá foi outro drama, mas tudo deu certo. No final, o fazendeiro foi desapropriado e os camponeses ficaram na terra dele.

Depois, acho que o grande momento foi na Constituinte, da luta que foi feita para a Constituinte e a luta pelas Diretas [campanha pelas eleições diretas para a presidência da República]. Na Constituinte, a Contag tinha uma força muito grande no processo de participação junto com outros movimentos. Foi onde ganhamos o direito efetivo da aposentadoria para os trabalhadores rurais. Consolidaram-se os direitos e se garantiu a essência da liberdade e da democracia nesse país.

 

 

Assessoria/Negociação

 

 

O DIEESE foi de fundamental importância para a formação do nosso pessoal, no conhecimento de como se compunha a formação do salário. O que compõe o salário, do que se compõe a carga salarial. Como compõe tudo isso? Para saber, assim, é 2% de aumento, é dez reais ou um salário de 30 reais vale o que no preço da cana e assim por diante. Isso foi importante. Fundamentalmente, também o processo de negociação. Aprender a negociar. Fazer o processo de negociação não só lá, inclusive entre nós, de como se organizar uma pauta, de como formar uma pauta. Ajudou a gente ter uma compreensão do que era o camponês trabalhando na roça, o meeiro, assalariado, trabalho escravo, recebendo salário quando o patrão dava, porque você não tinha nem força para isso, em alguns dos casos. É claro que nós temos lei. Se falar aqui, vão falar que é uma história mais antiga, que já tinham convenções mais antigas, mas eu acho que o DEESE teve um papel muito importante. Não sei como está, hoje, a relação Contag, sindicatos e o DIEESE. Mas, se não estiver discutindo, é um equívoco porque é uma coisa muito importante nessa questão.

 

Eventos Histórico

Em qualquer lugar do mundo, a reforma agrária não é política pública permanente, mas no Brasil está virando. Não se faz reforma agrária, não se muda a estrutura agrária e continua falando que faz reforma agrária e não faz. O Brasil perdeu a grande oportunidade da reforma agrária no governo João Goulart. João Goulart caiu por três ou quatro questões básicas, mas a fundamental foi a reforma agrária. João Goulart tinha quatro bandeiras, se não me engano, que era de reforma de base, educação, saúde, reforma agrária e política do país. Essas duas, a reforma agrária e a política mexiam efetivamente na relação de poder real da época. Ele caiu por isso. Ele caiu pela reforma agrária, porque ele dizia o seguinte: “Como vou fazer educação para um país, se os latifundiários é quem mandam na cidade, é quem mandam na fazenda? Não tem escola. Como vou ter um programa de saúde, efetivamente no interior, nas cidades pequenas, se as cidades são dominadas pelos latifundiários e pelos fazendeiros?” Então, virava educação, porque as pessoas que estavam na cidade, naquela época, acho que 30 milhões, que estavam nas cidades, 50 milhões devia ser a população brasileira, talvez, em 64. Tinha que fazer a reforma agrária para você poder ter um novo patamar de distribuição da riqueza e do poder do país e poder criar programas que pudessem ser desenvolvidos. Fez um decreto, foi um decreto de 13 de março, quando ele decretou que todas rodovias e ferrovias federais, 10 quilômetros de cada lado, tornariam, a partir daquele decreto da União, terra para fazer a reforma agrária. Todas seriam desapropriadas, seriam da União. Se não tivesse dono, na época, seriam da União, terras públicas, e se tivesse um fazendeiro no meio... Por quê ele quis fazer isso? Porque para fazer a reforma agrária, teria que ficar perto do centro distribuidor, do centro de distribuição, para quem não tinha estrutura os fazendeiros que estivessem daí para frente podiam continuar, mas 10 quilômetros de cada ferrovia e rodovia federal seria desapropriar metade do país, mais da metade do país. Só ficava a Amazônia, mas a Amazônia era reserva mesmo. Em qualquer lugar do mundo que se faz reforma agrária, se faz a reforma para mudar a base do que você tem; a reforma agrária não é dar terra a quem não tem, isso é coisa de reacionário, é coisa de paternalista, dar a quem não tem, é coisa de favor. Reforma agrária é mudar a base da relação do principal ativo de qualquer economia que é a terra, nada com uma relação de extinção do poder e desenvolvimento. Você tem um novo patamar de distribuição da riqueza e, conseqüentemente, a relação de poder muda efetivamente. Isso nós perdemos em 64. Perdemos num segundo momento porque não soubemos aproveitar a luta pelas Diretas Já, que garantiu a passagem pelo Colégio Eleitoral, e Tancredo [Neves], infelizmente, morreu. Ele não era de esquerda, era um conservador muito claro, no entanto, acreditava que o Estado de Direito não pode ter regime autoritário, é ter liberdade para fazer o que quiser. E nós perdemos isso, com a morte dele, e não conseguimos enquadrar o Sarney. Reforma agrária, para nós, é isso. Mudar a base da relação da economia e de poder; da distribuição de riqueza; isso é fundamental em qualquer lugar do mundo que foi feito; é feito para isso. O Brasil não fez e nem está fazendo reforma agrária, está desapropriando a terra, fazendo desapropriações, fazendo assentamentos, mas não muda a base da relação da estrutura agrária. Quantos assentamentos têm São Paulo, hoje? Mudou a fisionomia da economia paulista, dos latifundiários da cana, do café e da laranja? Não mudou. Não mudando essa relação de poder das terras, não muda a relação do banco, não muda a relação do comerciante na região, não muda a estrutura de relação de mercado, de educação e de poder político. Mas, nem o presidente Lula [Luis Inácio Lula da Silva], por mais que ele tenha vontade de fazer, com essa Constituição que a gente tem, com esse Judiciário que está aí, com a estrutura administrativa que nós temos, não se faz. Vai fazer assentamento. Antigamente, você tinha latifúndio por dimensão e latifúndio por exploração. Por dimensão seria o seguinte: a partir de certo tamanho de propriedade, tudo o que passar dali para frente, independente de ser produtivo, se é indústria ou não, o cara perde para a reforma agrária. Era latifúndio por dimensão e a de exploração, não está explorado, a linguagem é, terra produtiva e improdutiva. Uma coisa improdutiva você quer para você? Improdutivo não presta, para dizer que é propriedade não explorada, mas a linguagem é perversa. Improdutivo. Bom, a reforma agrária brasileira hoje, que eu acho que nós perdemos, vale a pena continuar ainda brigando, tem muita gente que tem terras que não está sendo utilizada ou mal utilizada. A gente não pode desapropriar uma fazenda porque tem o trabalho escravo, tem trabalho escravo, mas ela é economicamente explorada, que é o chamado trabalho produtivo. Racionalmente, ela é explorada. Quer dizer, o que é racionalmente explorada? Ocupa, usa mais de 80% da área agricultável sendo produzida e tem 100% de rendimento da produtividade. Tem trabalho escravo, mas não pode. A Constituição não permite desapropriar isso. No Estatuto da Terra permitia, porque ela não estava cumprindo lei trabalhista, lei previdenciária. Isso era possível. Está degradando o meio ambiente, mas está lá economicamente produtiva; o gado está com tantos hectares de acordo com a técnica, a soja também está dando tantos quilos por hectare de acordo com a técnica e aí você não pode desapropriar para fim de reforma agrária porque ela é produtiva. Nós perdemos na via judicial e também estamos perdendo esse debate. Na minha opinião.

 

 

Situação do Trabalho no Brasil

 

 

A situação do trabalho no Brasil faz parte desse mesmo processo. A reestruturação produtiva no campo veio muito antes do que a reestruturação produtiva na cidade, a chamada “mecanização conservadora”. Quando você meteu a máquina no campo a qualquer custo, para tirar mão de obra - na verdade, não é só isso, é para comprar máquina americana, das Massey Fergusson da vida -, mas, as grandes máquinas foram tirando o pessoal, modernizou, fez uma reestruturação, uma modernização. Você tinha, para criar uma quantidade de gado, cinco, seis, dez vaqueiros; hoje, precisa de um para tocar o gado, chamar o gado, por sinal, por chocalho; vai para cá, vai para lá. Para tirar o leite precisava de tirador de leite; agora é um só que vai pondo aquelas maquininhas na vaca, depois já está tudo empacotado, já está engarrafado. Esse negócio já vem antes, a cidade é que fez uma reestruturação maior, mais recente. Computador veio para quê? Para ajudar os operários, aumentar o salário deles? Em primeiro lugar, para desempregar. Tinha cinco empregados e agora tem um fazendo o mesmo serviço no computador. Eu acho que a reestruturação no campo e na cidade é mais perversa do que o processo da chamada globalização, porque ela é um componente que desmonta imediatamente a estrutura de emprego, não é só na indústria, mas na fazenda e no próprio serviço público. Na própria estrutura interna das empresas. Antes precisava de contador, não sei quantos auxiliares, escriturários e agora um disquetezinho desse tamanho, bota a empresa todinha lá dentro. O DIEESE, junto com a CUT [Central Única dos Trabalhadores], ajudou muito nessa discussão. Eu fiz uma viagem junto com o DIEESE, com a CUT, para o Japão e para os Estados Unidos, sobre os novos processos produtivos. O DIEESE ajudou muito nesse debate, organizou vários cursos com o pessoal e acho que ajudou bastante também nessa questão.

Saí, em 98, da Contag. Fazia três ou quatro anos que estávamos discutindo internamente, dentro da Contag, essa participação da reestruturação produtiva. Com o potencial e a qualidade que o DIEESE tem, acredito que deva estar ajudando, com certeza, o movimento sindical dos trabalhadores rurais.

 

Pesquisa/PCDA

A lembrança dos PCDAs, que tenho, é a amizade, a relação com o pessoal, que era gente muito boa. E o debate. Eu participei com um pé atrás, com muito preconceito. A Lilian Marques sabe disso; eu trabalhei com muito preconceito contra isso. Porque, vou dizer uma frase aqui que, às vezes, eu dizia: “Era o melhor programa para treinar comunista a virar neoliberal.” Que era a esquerda sindical aprender como se explora gente para perder o emprego. Então, eu sempre dizia isso. Não estou dizendo que era isso, estou dizendo que como você ia aprender lá o que eles estavam fazendo, o risco era muito grande de virar um pedacinho daquela máquina, eu tinha muita desconfiança. Mas o conteúdo era muito importante, você não discutia simplesmente como fazia, você discutia as políticas, as estratégias. E a relação de amizade com as pessoas, que foram muito importantes. Podia ter aprendido mais, se eu não tivesse participado com um pé atrás. Isso é verdade. Eu sei o quanto, às vezes, a gente faz essas coisas e só vai notar lá na frente que podia ter aprendido mais. Até para combater, se quisesse, mas, foi muito importante, eu não tenho dúvida. Vários companheiros meus que participaram - assessores da CONTAG e dirigentes sindicais - sem essa predisposição contrária, têm uma avaliação muito boa.

Mesmo com essa minha desconfiança, eles me levaram lá para os Estados Unidos. Eu nunca tinha admitido passar perto daquilo, porque saber como o americano explora basta viver aqui, ver nas lojas, nas fábricas, não precisa ir lá. Eles exploram muito bem o mundo inteiro e tudo funciona bem para explorar os outros. Eles funcionam muito bem no país deles, para explorar a gente com a maior tranqüilidade, e a gente ainda gasta dinheiro, o nosso dolarzinho, o nosso dinheirinho para visitar os Estados Unidos e deixar o dinheiro para eles. Isso é uma beleza, para explorar e a gente ir lá deixar o que a gente tem para eles. Até para visitar bandido que matou na Guerra do Vietnã, o povo vai lá visitar e paga para ver a cova daqueles cretinos cruéis. Eu fiquei muito fera com isso e todo mundo pagando para visitar um negócio daqueles. Bom, bom. Que o fascista, o nazista tenha prazer em visitar aquilo tudo bem, mas a gente de esquerda me perdoe... Eles exploram muito bem, até nisso eles sabem explorar.

 

 

Importância do Dieese

 

 

O DIEESE, para a sociedade, não tem um papel de transformação, pois seu papel é técnico, de assessoria. Ele tem um papel importantíssimo na assessoria, no apoio às organizações que pensam em mudar, em interferir nas relações econômicas com a sociedade. Auxiliando na técnica, ajuda as lideranças a formar políticas para isso. Aí eu estaria tirando o papel que é das entidades, pode ser que a entidade não faça. Assessorar a liderança sindical de uma ou outra central que queira pensar em transformação, intervenção do capital, da relação patrão/empregado, na formação de uma sociedade mais justa, não é mais uma relação típica patrão/empregado; é uma relação bem mais ampla do que essa questão da relação carteira assinada. Tem um papel importante, ele pode ajudar, mas não é transformador. Essa é a minha opinião, com todo o respeito.

O poder de articulação é o grande charme, a grande importância do DIEESE. Por isso que ele não é o líder da transformação, em termos de militância. Ele consegue fazer isso porque ele faz a assessoria técnica na formulação de políticas para mudanças. Se eu tenho visão como dirigente sindical de mudança, vou pegar todas essas informações para mudar. Se eu for um cara muito “pelegão” junto com a empresa, não vou usar muito bem; vou até me servir um pouco daquilo, ganhar uns 5% a mais lá, mas não muda. Até nisso ele tem um papel importante de saber conviver com a diferença e saber que o fato de a gente estar junto não quer dizer que você pense igual a mim e eu igual a você. Mas, independente das pessoas, é muito importante estarmos juntos, nos unirmos. Se a ação é comum para aquele objetivo, vamos em frente, porque amanhã nem olham um para o outro. Eu não sou obrigado a ir na sua casa, nem você na minha, mas a gente pode fazer debate político sem precisar ser amigo.

 

 

Futuro do Dieese

 

 

Acredito que se o DIEESE não perder a sua origem, seus objetivos, compromissos da sua base histórica, se o movimento sindical do trabalhador tiver a compreensão do papel que ele tem e ajudar a contribuir, a se relacionar com ele, para ele não ficar precisando fazer as coisas... A pior coisa que eu acho que podia acontecer seria o DIEESE fazer as coisas que faz, sobrevivendo sob o poder público ou de algumas empresas. Agora, isso não quer dizer que ele não faça isso. Outra coisa é dizer assim: para eu manter meu quadro, se eu não tiver convênio todo ano, todo mês com o governo ou com a empresa “x”, isso é péssimo para ele. Não que vai perder a qualidade, mas perde a capacidade de mobilidade. Agora, se o movimento sindical souber trabalhar isso, até mesmo ajudar na hora que o DIEESE precise de um convênio, para bancar, que seja o próprio movimento que ajude a negociar, porque qualquer governo, em qualquer lugar do mundo, qualquer regime, todo governo é autoritário e cooptador. Isso é uma característica de quem tem poder, isso não é crítica não, isso é realidade, qualquer poder, na minha opinião. Se um convênio com o governo, com o Ministério do Trabalho fosse feito pelo DIEESE, apoiado pelas centrais, para que ele faça isso, teria muito mais liberdade de tocar, sem saber sequer se o governo existirá amanhã. Porque o DIEESE, para se sustentar efetivamente, precisa de independência, manter a qualidade de seus quadros e poder atender, com rapidez, a demanda dos trabalhadores, ajudar, alertar o dirigente sindical para ele não perder sua perspectiva, sua filosofia. Como eu sou marxista por convicção, acredito que essa história da globalização e do liberalismo está chegando ao seu esgotamento, começa uma nova discussão no mundo de um socialismo não ortodoxo, mas de um socialismo democrático, moderno, capaz de mudar ou diminuir essa perversidade que está aí. Se eu não ver, tomara que meus filhos vejam isso com muita satisfação. Tem alguns sinais importantes. Desde que você tire dessa relação o Chávez [Hugo Chávez, presidente da Venezuela], que na minha avaliação é um fascista, populista de direita, golpista, autoritário. Agora você tem em toda a América Latina um movimento grande no campo da esquerda. Na Europa, não podemos esquecer essa mulher que vai disputar a presidência francesa [a candidata socialista Ségolène Royal]. É de um grupo mais avançado, do que o Lionel Jospin. Isso é uma coisa para ficar de olho. Ali os vizinhos espanhóis, esse rapaz que governa hoje [José Luis Rodríguez Zapatero] é mais avançado do que o primeiro-ministro que caiu, o González [Felipe González], é mais pragmático nas ações. A Europa começa a ter movimento extremamente importante sobre o rearranjo, o processo, América Central, a esquerda radical quase ganha no México, na porta do inimigo mais cruel ali; Nicarágua voltou o nosso companheiro, o Ortega [Daniel Ortega]; Peru, a esquerda não ganhou porque o Chávez se meteu e fez só besteira lá. Eu acho que chega da gente fazer fantasia na América Latina e colocar o Chávez como governante de esquerda. Eu não concordo quando algum companheiro de esquerda coloca que Chávez é de esquerda.

 

Família

Eu fui casado, desquitado, divorciado juridicamente e hoje tenho outra esposa, a Helena de Fátima Santos. Tenho três filhos: a Ana Carolina é procuradora da República e o menino, o Daniel, está em Natal, no Rio Grande do Norte. A Ana mora em São Paulo. O Daniel está em Natal, trabalhando na área de turismo, tentando um negócio de Turismo, não como empresário. E tenho uma pequenininha que ainda mora comigo, está estudando e mora comigo.

Especialmente, do primeiro casamento, a Ana Carolina e o Daniel sofreram muito, porque, eu lembro que muitas vezes chegava em casa, era só pedir para arrumar outra mala e ia embora, ficava com eles muito pouco. Eu era mais “xiita” na minha relação, e em qualquer final de semana, se tivesse reunião, eu fazia questão de ir e não me preocupava muito. E eles sofreram mais com isso. Agora, a atual, teve um período, mais ou menos assim. Até porque deixei o movimento sindical quando ela tinha oito anos. Então, tenho oito anos de convivência com ela. Mas é difícil para a liderança sindical. Mulheres e filhos são verdadeiros heróis. Eu convivi muito pouco com os meus dois filhos do primeiro casamento. Também teve o problema de separação da mãe deles, mas não foi só isso. A carga da Contag era uma barbaridade em termos de ocupação no final de semana. Eu era um caixeiro-viajante. A família de qualquer dirigente sindical, que tem compromisso de fato, sofre e muito. Aquele que tem organização sindical, mas seis horas está em casa; final de semana, prefere não viajar; esse não é dirigente sindical, é um servidor público.

 

 

Avaliação/Trajetória de Vida

 

 

Eu sempre tive um sonho, que nunca acabou, de antes de morrer ver esse país mais justo, mais moderno, no que eu chamo de regime de socialismo democrático. Eu acredito nisso. Que vai ter. Pode não alcançar, acredito talvez não alcance, mas meu sonho sempre foi esse, desde quando eu acreditei em gente, entendi a relação de mundo, de poder, de capital, a relação de poder, de fato, com a sociedade. Foi o sonho da minha vida inteira. Eu continuo sonhando, eu acredito muito nisso, ainda. Apesar de termos um Congresso tão - me perdoa a palavra, não tenho uma palavra mais correta - tão vagabundo, me assusta. Assusta por termos abandonado o Brasil; muito cedo se abandonou a luta armada, de transformação pela revolução; aceitou a luta institucional no campo democrático, formal, conservador, que é esse do processo eleitoral. Quem garante a liberdade e a democracia não é o Executivo. O Executivo é autoritário em qualquer lugar do mundo. Quem garante a liberdade, a democracia, é o Parlamento. O Parlamento, Câmara, porque esses representam o povo. O Senado não representa o povo. O Senado representa os Estados, ele é apenas para representar a defesa do Estado em relação ao povo. Em outras palavras, a Câmara exagera num projeto e eles dizem: “Bom, isso o Estado não pode bancar.” Eles defendem o Estado amplo e essa coisa que está acontecendo no Congresso Nacional é assustadora porque você cria um clima de desqualificação total do Parlamento. E aí, o que diz respeito à norma, à lei, aos nossos interesses, passa a jogar no Executivo. Eu jamais jogaria todos os meus interesses no Executivo. O Executivo é importante, mas, por natureza, não estou dizendo as pessoas, Estado, regime, governo é autoritário por natureza e não representa a democracia. Ele pode ajudar no equilíbrio nas políticas públicas, mas não no equilíbrio democrático. Isso me assusta muito e isso pode atrasar o Brasil no avanço do campo socialista, caso nada mude isso. Se você elege um presidente como o Lula, na reeleição com a votação que teve, e a maioria do Congresso é uma coisa de doer, quando você vê três ou quatro figuras eleitas aqui em São Paulo, aí tudo o mais é fichinha. Vocês sabem de quem eu estou falando, não vou citar o nome dele porque ele não merece, mas vocês sabem de quem eu estou falando.

 

 

Avaliação/Projeto Memória

 

 

Não sei se é muita arrogância da minha parte, dar um depoimento. Acho que participei de momentos importantes da história e se servir para o DIEESE, para o debate, até para as pessoas criticarem o que eu estou falando, mas se servir para isso, eu acho que contribuí muito. Chega de a gente concordar, de ter um pensamento único. As contraposições que você saiba defender e criticar com respeito, aquilo que é política, o debate firme, só faz crescer, mesmo quando eu discordo. Eu aprendo, não cedo na hora, mas cedo depois. Eu tenho certeza que ninguém nunca mais me chamou de autoritário.

 

 

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